|
Arte de Luka Magalhães |
|
Azenha, Ni e Ciríaco, sob os olhos e ouvidos atentos de Eder Lima (foto Celia Maria Ribeiro) |
Noite fresca de sábado, uma brisa macia sopra sem força sobre os rostos
afogueados da turma da Casa Amarela. Remanescentes de mais um evento no local, o
pessoal – atrasado, pra variar – se despede com beijos, abraços, amassos,
afagos, ali na Julião Pereira Machado, todos saindo pra outras correrias,
outras curtições, outros eventos. Eu e João não, tínhamos compromissos em casa. Todos levantam
âncoras e partem para singrar os asfaltos da Sampalândia. Ligo o som do carro
bem baixinho, entabulo uma conversa franca e direta com meu caçula e amigo. Em
certos momentos, contudo, um silêncio nos surpreende no tráfego tranqüilo da
Jacu-Pêssego.
A tarde&noite em companhia dos poetas-boa prosa Ni Brisant, Rodrigo
Ciríaco e Bruno Azenha deixou-me em paz, todo relax. O encontro como trio deu-se
durante o Blablablá, evento mensal da Casa Amarela – Espaço Cultural, que
discute produção artístico-cultural, educação e sustentabilidade no universo
periférico. Com o tema “Literatura Marginal – Intenção e Ação”, havia uma
curiosidade natural de todos os presentes em ouvir histórias dos protagonistas
convidados, todos muitos jovens, com muitos quilômetros rodados já, fazendo a
diferença nas comunidades aonde vivem.
Com a tarde estava bem arranjada, o Blablablá começou. No pique de sempre,
o casal Éder Lima e Lígia Regina deram a canja poético-musical inicial. Atendendo
a uma solicitação do escultor Euflávio Madeirart, que está com muitas de suas
obras expostas no local. Ele faz um breve discurso, homenageia de forma muito singela
o poeta Akira Yamasaki, um dos gestores da casa. Entrega a ele uma escultura delgada,
à Giacometti, confeccionada em pau-brasil, esculpida com o esmero peculiar de seus
dedos céleres e sua expressividade única. Akira, irradiado pela surpresa, só
sabe corar as maçãs do rosto. E agradecer, e corar, e sorrir. Pela primeira
vez, desconfio que o comunicador nato quer sair do palco.
Depois da quebra do protocolo, os convidados enfim ocupam as cadeiras e,
provocados por este escriba, iniciam suas histórias, percursos e vivências. O
primeiro a comparecer com algumas notas biográficas é Rodrigo Ciríaco: “Educador,
comecei o Sarau dos Mesquiteiros em 2007”. Diz que foi o Allan da Rosa que o convidou
para lançar o primeiro livro, “Te Pego Lá Fora”, de contos. “Em 2009 fundamos o
coletivo e iniciamos as atividades com literatura e teatro”. Acompanhado da
Malu, sua princesinha que faz que faz um contraponto à formalidade do momento,
Ciríaco prosseguiu, “fui picado por esse bichinho da literatura, na verdade
tudo o que tenho hoje, apesar de meu ofício ser educador, devo à literatura”.
As quebras informais ajudam a descontrair. E nisso muito colaborou o
próximo convidado a falar. Hilário, o poeta Ni Brisant contou um pouco de sua
história. Segundo ele, que chegou em São Paulo em 2005, vindo da Bahia. “Quando
cheguei em São Paulo,
foi como se eu tivesse saindo da Idade Média”, recordou. Bem humorado, disse
que veio para a cidade grande cursar Letras, mesmo que à época não soubesse
claramente o que significava estudar Letras. Ni queria explicar o êxtase do
encontro com a metrópole, assim como a importância que os saraus adquiriram em
sua vida. “Eu não tinha maiores problemas, não era morador de rua, não passava
fome, mas desde que descobri os saraus – há uns 4 anos – não fico uma semana
sem participar de algum”, disse.
2007 foi ano emblemático também para o terceiro convidado do Blablablá,
Bruno Azenha. Contando que foi neste ano que começou a trabalhar com arte na
escola Carlos Gomes, no projeto “Café com Poesia” – uma gincana anual do
colégio – Azenha comentou que “depois deixei um pouco a poesia de lado, pois
passei a fazer outras coisas, arte de rua, teatro, marcenaria, pichação,
grafite”. Até que em 2012 ele iniciou, junto com Rafael Carnevalli, Mano Cabelo
e outros, um movimento de arte tipicamente juvenil, o Hospício Cultural. Daí
derivou para o acontecimento dos saraus. O poeta explicou também que o que o aproximou
da Casa Amarela, foi que ele e seu grupo perceberam que o Movimento Aliança do
Praça (MPA), iniciado com os membros do Hospício Cultural, tinha
coincidentemente as mesmas iniciais do Movimento Popular de Arte (MPA), que
também ocupara a Praça do Forró, no centro de São Miguel, desde 1978.
Paralelamente, ele inicia, segundo suas palavras, o Sarau Verde, na divisa
entre São Miguel e Itaquera, assim como o S.O.M.A., um movimento que mistura
ações culturais com trabalhos sociais, como distribuição de roupa, comida e
atenção humana para moradores de rua. “Me pego pensando todos os dias sobre o
que eu seria hoje sem a arte”, filosofa.
Ainda fazendo analogias entre sua Bahia Natal e a capital paulista, Ni
recorta a conversa de forma sintética, “em São Paulo, o cara mais perverso pode estar ao
lado do cara mais gente boa”. Falando sobre a significação do espanto diante da
urgência da vida urbana, o poeta, que é um dos organizadores do Sarau Sobrenome
Liberdade, no Grajaú, e do projeto Ninguém Lê, de encontro de escritores com o
público, vai de encontro à poeticidade para exemplificar a sensação da
megalópole, “aqui, cordeiros e lobos almoçam no mesmo fast-food”.
"O capitalismo toma tudo de você, até a sua revolta"
Questionado pelo público sobre possíveis influências, Ciríaco confessa sua
atenção pelas obras de Plínio Marcos e João Antônio: “gostaria de ser Plínio
Marcos”, assume. “Frustrado por não ser ator”, o poeta e contista faz uma
leitura crítica da história, onde revê os princípios da contracultura sendo
influenciados pelo capitalismo. “Em junho de 2013 tínhamos um movimento pelos
20 centavos que depois virou outra coisa, o capitalismo toma tudo de você, até
a sua revolta”, conceitua. Dentro desse mal estar em que uma força maior sempre
domina e canaliza as forças revoltosas coletivas e individuais da sociedade, o organizador
do Sarau dos Mesquiteiros, do Sarauzim e do Rachão poético permite-se filosofar
também, “todo mundo fala mal do diabo, mas ninguém vê que ele é quem faz o
trabalho sujo”.
Ni Brisant aproveita uma fenda na conversa e foge para
outras searas. Relembra que “arte é fugir do óbvio”, fala do prazer do
encontro, da amizade, das vivências fora da lógica capitalista. Bruno Azenha
complementa, “a arte já está dentro da pessoa, basta ela achar”. Neste aspecto,
relembra o papel primordial da Educação: “um professor de filosofia que eu
tinha que foi excepcional em minha vida”.
Rodrigo Ciríaco, também professor de História, pega o gancho: “na escola
em que acredito a arte é fundamental”. Pronto! A Educação torna-se o vetor da
conversa: “Na escola se ensina a ler e a escrever, não se incentiva a literatura
como arte”, arremata ele, para em seguida assegurar que “não que a arte salve,
mas fora da arte não tem salvação”.
Convido Daniel Carvalho, professor da rede pública que está visitando o Blablablá,
para comentar sobre o livro “Entre Versos Controversos”, que ele organizou com
poemas de 15 alunos, na região de Cidade Líder, Itaquera. Daniel fala da
experiência da literatura como modificadora das relações e na fruição.
Lembrando que antes de ser uma instituição educacional, a escola na verdade é
uma instituição política, o também músico e poeta relata que há um movimento
claro de modificar a pedagogia para que seja mais coerente com os novos tempos,
em tentar ver a relação ensino-aprendizagem em sua totalidade, sem divisões
moduladas em disciplinas.
Com a participação de várias pessoas da platéia, o debate avança, sem ameaçar
terminar. Ainda assim, com muita vontade de quero mais, aproveito uma brecha
para fechar o ciclo dessa conversa. Cumprimos a sina de parar a troca de idéias
justamente no momento em que as idéias estão pululando, que nem pipoca na
panela. Cada um dos convidados recita um poema, tiramos fotos, trocamos
endereços e telefones, nos abraçamos.
É isso, o Blablablá cumpre sua de ser espaço de reflexão e também
catalisador de múltiplas expressões, principalmente a do abraço. Todos foram
embora, inclusive eu e João. Mas entre os faróis da Jacu-Pêssego reflito já com
saudade desse blá blá blá só de bolas dentro.
|
Akira, premiado por Euflávio Madeirart (foto Lígia Regina) |
|
A arte final do Blablablá: sorrisos (foto Célia Maria Ribeiro)
|