quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Ni, Ciríaco, Azenha: como foi blablablar na Casa Amarela em setembro


Arte de Luka Magalhães
Azenha, Ni e Ciríaco, sob os olhos e ouvidos atentos de Eder Lima (foto Celia Maria Ribeiro)


Noite fresca de sábado, uma brisa macia sopra sem força sobre os rostos afogueados da turma da Casa Amarela. Remanescentes de mais um evento no local, o pessoal – atrasado, pra variar – se despede com beijos, abraços, amassos, afagos, ali na Julião Pereira Machado, todos saindo pra outras correrias, outras curtições, outros eventos. Eu e João não, tínhamos compromissos em casa. Todos levantam âncoras e partem para singrar os asfaltos da Sampalândia. Ligo o som do carro bem baixinho, entabulo uma conversa franca e direta com meu caçula e amigo. Em certos momentos, contudo, um silêncio nos surpreende no tráfego tranqüilo da Jacu-Pêssego.
A tarde&noite em companhia dos poetas-boa prosa Ni Brisant, Rodrigo Ciríaco e Bruno Azenha deixou-me em paz, todo relax. O encontro como trio deu-se durante o Blablablá, evento mensal da Casa Amarela – Espaço Cultural, que discute produção artístico-cultural, educação e sustentabilidade no universo periférico. Com o tema “Literatura Marginal – Intenção e Ação”, havia uma curiosidade natural de todos os presentes em ouvir histórias dos protagonistas convidados, todos muitos jovens, com muitos quilômetros rodados já, fazendo a diferença nas comunidades aonde vivem.
Com a tarde estava bem arranjada, o Blablablá começou. No pique de sempre, o casal Éder Lima e Lígia Regina deram a canja poético-musical inicial. Atendendo a uma solicitação do escultor Euflávio Madeirart, que está com muitas de suas obras expostas no local. Ele faz um breve discurso, homenageia de forma muito singela o poeta Akira Yamasaki, um dos gestores da casa. Entrega a ele uma escultura delgada, à Giacometti, confeccionada em pau-brasil, esculpida com o esmero peculiar de seus dedos céleres e sua expressividade única. Akira, irradiado pela surpresa, só sabe corar as maçãs do rosto. E agradecer, e corar, e sorrir. Pela primeira vez, desconfio que o comunicador nato quer sair do palco.
Depois da quebra do protocolo, os convidados enfim ocupam as cadeiras e, provocados por este escriba, iniciam suas histórias, percursos e vivências. O primeiro a comparecer com algumas notas biográficas é Rodrigo Ciríaco: “Educador, comecei o Sarau dos Mesquiteiros em 2007”. Diz que foi o Allan da Rosa que o convidou para lançar o primeiro livro, “Te Pego Lá Fora”, de contos. “Em 2009 fundamos o coletivo e iniciamos as atividades com literatura e teatro”. Acompanhado da Malu, sua princesinha que faz que faz um contraponto à formalidade do momento, Ciríaco prosseguiu, “fui picado por esse bichinho da literatura, na verdade tudo o que tenho hoje, apesar de meu ofício ser educador, devo à literatura”.
As quebras informais ajudam a descontrair. E nisso muito colaborou o próximo convidado a falar. Hilário, o poeta Ni Brisant contou um pouco de sua história. Segundo ele, que chegou em São Paulo em 2005, vindo da Bahia. “Quando cheguei em São Paulo, foi como se eu tivesse saindo da Idade Média”, recordou. Bem humorado, disse que veio para a cidade grande cursar Letras, mesmo que à época não soubesse claramente o que significava estudar Letras. Ni queria explicar o êxtase do encontro com a metrópole, assim como a importância que os saraus adquiriram em sua vida. “Eu não tinha maiores problemas, não era morador de rua, não passava fome, mas desde que descobri os saraus – há uns 4 anos – não fico uma semana sem participar de algum”, disse.
2007 foi ano emblemático também para o terceiro convidado do Blablablá, Bruno Azenha. Contando que foi neste ano que começou a trabalhar com arte na escola Carlos Gomes, no projeto “Café com Poesia” – uma gincana anual do colégio – Azenha comentou que “depois deixei um pouco a poesia de lado, pois passei a fazer outras coisas, arte de rua, teatro, marcenaria, pichação, grafite”. Até que em 2012 ele iniciou, junto com Rafael Carnevalli, Mano Cabelo e outros, um movimento de arte tipicamente juvenil, o Hospício Cultural. Daí derivou para o acontecimento dos saraus. O poeta explicou também que o que o aproximou da Casa Amarela, foi que ele e seu grupo perceberam que o Movimento Aliança do Praça (MPA), iniciado com os membros do Hospício Cultural, tinha coincidentemente as mesmas iniciais do Movimento Popular de Arte (MPA), que também ocupara a Praça do Forró, no centro de São Miguel, desde 1978. Paralelamente, ele inicia, segundo suas palavras, o Sarau Verde, na divisa entre São Miguel e Itaquera, assim como o S.O.M.A., um movimento que mistura ações culturais com trabalhos sociais, como distribuição de roupa, comida e atenção humana para moradores de rua. “Me pego pensando todos os dias sobre o que eu seria hoje sem a arte”, filosofa.
Ainda fazendo analogias entre sua Bahia Natal e a capital paulista, Ni recorta a conversa de forma sintética, “em São Paulo, o cara mais perverso pode estar ao lado do cara mais gente boa”. Falando sobre a significação do espanto diante da urgência da vida urbana, o poeta, que é um dos organizadores do Sarau Sobrenome Liberdade, no Grajaú, e do projeto Ninguém Lê, de encontro de escritores com o público, vai de encontro à poeticidade para exemplificar a sensação da megalópole, “aqui, cordeiros e lobos almoçam no mesmo fast-food”.

"O capitalismo toma tudo de você, até a sua revolta"
Questionado pelo público sobre possíveis influências, Ciríaco confessa sua atenção pelas obras de Plínio Marcos e João Antônio: “gostaria de ser Plínio Marcos”, assume. “Frustrado por não ser ator”, o poeta e contista faz uma leitura crítica da história, onde revê os princípios da contracultura sendo influenciados pelo capitalismo. “Em junho de 2013 tínhamos um movimento pelos 20 centavos que depois virou outra coisa, o capitalismo toma tudo de você, até a sua revolta”, conceitua. Dentro desse mal estar em que uma força maior sempre domina e canaliza as forças revoltosas coletivas e individuais da sociedade, o organizador do Sarau dos Mesquiteiros, do Sarauzim e do Rachão poético permite-se filosofar também, “todo mundo fala mal do diabo, mas ninguém vê que ele é quem faz o trabalho sujo”.
Ni Brisant aproveita uma fenda na conversa e foge para outras searas. Relembra que “arte é fugir do óbvio”, fala do prazer do encontro, da amizade, das vivências fora da lógica capitalista. Bruno Azenha complementa, “a arte já está dentro da pessoa, basta ela achar”. Neste aspecto, relembra o papel primordial da Educação: “um professor de filosofia que eu tinha que foi excepcional em minha vida”.
Rodrigo Ciríaco, também professor de História, pega o gancho: “na escola em que acredito a arte é fundamental”. Pronto! A Educação torna-se o vetor da conversa: “Na escola se ensina a ler e a escrever, não se incentiva a literatura como arte”, arremata ele, para em seguida assegurar que “não que a arte salve, mas fora da arte não tem salvação”.
Convido Daniel Carvalho, professor da rede pública que está visitando o Blablablá, para comentar sobre o livro “Entre Versos Controversos”, que ele organizou com poemas de 15 alunos, na região de Cidade Líder, Itaquera. Daniel fala da experiência da literatura como modificadora das relações e na fruição. Lembrando que antes de ser uma instituição educacional, a escola na verdade é uma instituição política, o também músico e poeta relata que há um movimento claro de modificar a pedagogia para que seja mais coerente com os novos tempos, em tentar ver a relação ensino-aprendizagem em sua totalidade, sem divisões moduladas em disciplinas.
Com a participação de várias pessoas da platéia, o debate avança, sem ameaçar terminar. Ainda assim, com muita vontade de quero mais, aproveito uma brecha para fechar o ciclo dessa conversa. Cumprimos a sina de parar a troca de idéias justamente no momento em que as idéias estão pululando, que nem pipoca na panela. Cada um dos convidados recita um poema, tiramos fotos, trocamos endereços e telefones, nos abraçamos.
É isso, o Blablablá cumpre sua de ser espaço de reflexão e também catalisador de múltiplas expressões, principalmente a do abraço. Todos foram embora, inclusive eu e João. Mas entre os faróis da Jacu-Pêssego reflito já com saudade desse blá blá blá só de bolas dentro.



                                                                                                                        Escobar Franelas

Akira, premiado por Euflávio Madeirart (foto Lígia Regina)

A arte final do Blablablá: sorrisos (foto Célia Maria Ribeiro)


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