quarta-feira, 18 de maio de 2016

Sarau da Casa Amarela - emoção à flor do palco!

MC Akira capturado pelas lentes de Miragaya

Se há alguma palavra que possa traduzir 1% do que foi o Sarau da Casa Amarela neste domingo, ela deve ser esta: emoção! Talvez existam cinquenta outras palavras que retratem com mais qualidade a experiência vivida ali: epifania, alumbramento bandeiriano, espanto gullartiano, catarse, paixão, culto, redenção, sublimação, transcendência, profusão, enternecimento, desrealização, fuga, estremecimento, aliteração, exorcismo, expiação, assoberbamento, exultação, exaltação...
Foi essa a imersão proporcionada a todos os presentes pelas presenças estelares de Raquel Pereira e seu grupo Uarás (Edinho Twin, Val Branco, Val de Barros), o Zélementos (parceria entre Darc Maia e Victor Barros), e a escritora e editora Liz Rabello (que ao lado do fiel companheiro, parceiro e amigo Carlos Torrez mantém a editora Essencial) e mais uma infinidade de pérolas que ajudaram a tecer um colar solar naquele domingo outonal: Milton Luna, Mário Neves, Euflávio Gois, João Maloca, Yago Luna, Ivan Néris, Inês Santos, Rosinha Morais, Henrique Vitorino (numa singela homenagem ao mestre Raberuan), Manogom, Mateus Muradás, Beto Rio, Rosa Rocha (destilando emoções profundas ao cantar um poema de Osvaldo Tiveron), Tiveron e Carlos Bacelar, Bacelar e Sílvio Kono, o engraçadíssimo Francis Gomes com seu causo matuto, o indefectível Guilvan Miragaya, Escobar Franelas, José Pessoa, Silvia Maria Ribeiro, Adão Santos e Lucimar Borges, Alcione Gimenes e Carlos (representando a Editora Futurama), Éder Lima e Lígia Regina, João Caetano do Nascimento, Jorgina Rodrigues, Sandra Gomes e Gilberto Braz, além dos óbvios e sempre renovadores mestres de cerimônia Luka Magalhães e Akira Yamasaki.
O grupo Uarás trouxe para o sarau um fino painel com algumas das mais belas canções da música brasileira. Destaque para a magistral interpretação de Cuitelinho (Pena Branca e Xavantinho), na interpretação serena e contida de Raquel Pereira. Os Zélementos trouxeram para o palco da CA a canção soberba de Darc Maia, que escreve e interpreta de maneira única um repertório pautado pelo encantamento poético que transita com a mesma atenção o mundo rural e o mundo urbano, fincando - todavia - os pés firmemente no subúrbio, nas bordas da megalópole, sem deixar ser engolido por ela. Liz Rabello trouxe dois livros infantis, "O resgate" e "Amor à primeira lambida", agigantando ainda mais um espetáculo que se desenha sempre para um público mais adulto. Essa, aliás, uma das tarefas ainda a ser superada pela maioria dos saraus. Quem, como eu, já leu as duas obras, sabe que estamos diante de uma escritora inspirada e devotada à nobre tarefa de levar ideias cidadãs à pequerruchada que se dispor à literatura.
Fatos dados, pavimentamos o 44º Sarau da Casa sob o manto iluminado da deusa Poesia. que ela nos permita mais congraçamentos como este, até o fim dos dias, ou do encontro final com seus (a)braços anelantes.
Lígia & Éder: viscerais - foto Luka Magalhães

Liz (luz) Rabello pela câmera esperta de Luka Magaçhães

Francis Gomes entretendo o público da CA - foto Luka Magalhães

Edinho, Kinho (convidadíssimo no cajón), Raquel e Val: Uarás - foto Luka Maalhães

Val Branco implodindo palavra por palavra, letra a letra - foto Luka Magalhães

Victor e Darc, os Zélementos - foto Luka Magalhães
Todo sarau tem uma foto oficial - arquivo feicibuquiano de Luka Magalhães



terça-feira, 3 de maio de 2016

Inéditos & inacabados - abril/2016


No dia 30 de abril realizamos na CA mais uma roda de criação literária, o Inéditos & Inacabados, que já está no seu 2º ano. Dessa  vez tivemos a mediação luxuosa de Eliana Mara, educadora e poeta da estirpe dos baitas, que com seu carisma, sua sensibilidade arguta e conhecimentos estratosféricos que extrapolam em quilômetros aquilo que poderíamos denominar senso comum, levou-nos a um passeio não descritível pelo tapete mágico da literatura.
Os textos colaborativos - que foram colocados em finas porcelanas para degustação e consideração dos convivas - estão todos abaixo, inaugurados pelo mote provocativo de Eliana.
Deguste-os! Desfrute-os!


Cartaz da chamamento para o evento - arte de Luka Magalhães
Texto que norteou as criações deste encontro:

SIGA O MAPA: TRAGA SUAS INAUGURAÇÕES E DESLUMBRAMENTOS 
(Eliana Mara)

“É com uma alegria tão profunda. É uma tal aleluia. Porque ninguém me prende mais. Tenho um pouco de medo: o medo ainda de me entregar pois o próximo instante é o desconhecimento. O próximo instante é feito por mim? ou se faz sozinho? Fazemo-lo juntos com a respiração. E com uma desenvoltura de toureiro na arena.
Eu te digo: estou tentando captar a quarta dimensão do instante-já que de tão fugidio não é mais porque agora tornou-se um novo instante já que também não é mais. Cada coisa tem um instante em que ela é. Quero apossar-me do é da coisa.” (Clarice Lispector, em Água Viva)

Objeto que sempre resiste e não capturamos. O instante é sempre o futuro. Porque o instante dito já é passado. Essa levitação, depois do mergulho no oceano dos instantes, um peixe que vem à tona e nos olha com grandes olhos perplexos, esse intervalo muito sutil, quase imperceptível entre um instante e outro, esse intervalo é a epifania inaugurada a cada retorno no qual emerge o milagre. Estando em nós, saímos para fora de nosso corpo e nos vemos à distância, nós somos nossos observadores. O salto brevíssimo para outra dimensão. Um susto. Um vaga-lume. O desenho de um raio imprevisto. Segundo mínimo em que a respiração é cortada. Suspiro. Sobressalto. Aparição. Explode sempre além de nós a mágica do instante que nunca é, que nunca podemos prender em mãos temerosas.

A epifania é o passo em direção ao estrangeiro e difuso momento em que algo maior nos envolve. Maior e sem medidas, fora de nós e sem localização definida, sensação quase indelével que está presente mas é intangível.

Como viver a epifania neste corpo perecível? Como ser templo e fiel? De que modo rastrear as sensações indescritíveis? Como absorver a leveza da ruptura, nosso salto de um instante a outro? Depois de vivida, uma epifania nos transporta para outra espiral, onde já não somos iguais. E afinal, quando nosso ser encontra um lugar fixo? Se somos feitos de infância, de quimeras, de memórias?

A escrita pode ser a aventura da passagem. Estado inconcluso. Imensidão. Tudo silêncio e escândalo. A jornada para dentro de si. A viagem em busca do que não se pode dizer com palavras medidas com alguma métrica alheia. Na floresta do alheamento, migrações. Tudo em estado de sonhos, de um peregrino insatisfeito.

A estrada para dentro de seu coração selvagem. Coração inquieto. Pousar no avesso em busca de um país novo. Conversa desdobrada em mil sentidos. O tempo bem traçado no silêncio. O retorno. O berço. Alegria e choro. Um eu profundo e outros eus residindo nas superfícies. A onda que vira espuma e tudo está dito na garrafa portadora de cartas indecifráveis.
Caminhe para dentro de si mesmo. Deixe as cortinas caírem, dos inúmeros teatros que encenam sua história, desdobrada em mil e uma outras. Incessante perguntar, incessante não saber.
Traga o corpo do instante para si. Permita que as perguntas permaneçam sem respostas. Dê ouvidos para o silêncio. Aceite ás águas que chegam. Aceite as águas que partem."




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Poema dadaísta composto dentro da oficina de criação literária Inéditos & Inacabados, em 30 de abril de 2016, início de tarde, na Casa Amarela – Espaço Cultural. Mediado por Eliana Mara e coordenado por Escobar Franelas, o texto traz versos de Sueli Kimura, Inês Santos, Rosinha Morais, Gilberto Braz, Akira Yamasaki, Darc Maia, Elielza Wicca, Luka Magalhães, Mário Neves, Enide Santos, Jorge Gregório “Gueguê”, Lígia, Regina, Éder Lima, Eliana Mara e Escobar Franelas:

O rio, o fogo, o ar
A quem pertence o tempo que contemplo?
Num instante,
Num claro instante,
Algo acontece
Nada acontece
Silêncio!
“Relógio”
As voltas do tempo
A ciranda das horas
A cada momento, um mistério
Uma história
À noite adormeço contando estrelas
Que desaparecem na luz da manhã
Um ritmo cego e alucinante
A cada instante uma nova visão
A cada segundo uma ansiedade
Em cada saudade uma separação
E agora a água pulsa
Aquele instante ficou suspenso
No sol de cada manhã
O tempo é um ocaso
Que não por acaso
Nos embosca
Em contratempos
E o instante passa
Lento, imaculado e eterno
Para muito além dos bosques encantados
Na vida somos o projétil e o alvo
Todos os nossos amanheceres
E anoiteceres já estão contados
Nenhum a mais nenhum a menos
Naquele instante o silêncio agigantou-se
Cena 1: um menino, a melancia. A pedra. Corta.
Será que tem alguma gota?
Não, é só um instante
Virou poça
“O tempo”
Tenho o tempo de te ouvir.
Na mesma proporção
Terás tempo de me ouvir?


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Texto saboroso de Lígia Regina, que antropofagicamente comemos na roda de criação literária Inéditos & Inacabados:



ainda sobre o ‪#Instante...
"tempos ...de ingenuidade"
autoria: Ligia Regina
.
.
você se lembra?
.
da gente
sentados
na ponta
daquela pedra,
debaixo
daquela árvore
enorme
que tinha
lá no pé da serra
no vale
dos pássaros...
você se lembra
do uivo dos ventos?
um canto lírico,
que causava calafrios...
a gente apertava as mãos
e se aconchegava
pertinho
um do outro,
o coração
acelerava tanto
que doía
na boca do estômago,
tão bonito
olhar juntinho
o sol sumindo
por detrás
da nuvem alaranjada,
hora que você
me abraçava
com um olhar
profundo...
sentados
na ponta
da pedra
do vale dos pássaros,
nosso pequeno mundo
inundava
de um marítimo azul
no céu...
de olhos fechados
flutuávamos
em bolhas de sabão,
que se espalhavam
no infinito,
enquanto a gente
se beijava,...
ainda quero ser nuvem,
mas o tempo
daquele instante,
passou.
.
Minha contribuição para o Inéditos e Inacabados de hoje, na Casa Amarela, com a mediação linda de Eliana Mara (Ligia Regina)




Daniel Carvalho não veio dessa vez mas mandou este fondue literário. Nos fartamos!



O sempre provocante, instigante e estimulante Gilberto Braz trouxe esse instantâneo, vinho que nos inebriou os sentidos e despertou a epiderme da alma:


Sueli Kimura vem comprovando a cada encontro que realmente alguns dos melhores perfumes vêm realmente embalados nos menores frascos:

Pinga a gota
Antecedendo o fim
Na poça

Gota caindo
Perpetua o instante
Antes do fim


Efêmero
Intenso instante
Emoção registrada
Na mente
HD em gigabyte


É sempre um bálsamo poder beber e comer as reflexões de Angelina Neves, escritora e educadora moçambicana, que enviou-nos um prato saboroso e desconcertante. O Brasil, a terra toda, agradecem, Angi querida!

P.S. indicativo!!
1. Se não gostares deita fora!
2. Se achares grande de mais, corta!
3. Se achares que vale a pena... "respira-me ai no Brasil"!!!
Obrigado pelo desafio.
Abraços do tamanho do mundo!

O mapa de mim!

Tentei... como divertimento, tento de quando em vez, seguir o meu mapa, o mapa simples, que não parece muito grande nem muito complicado, se acreditarmos no que nos dizem na escola... É verdade, na escola sempre encontram uma maneira de nos tapar os olhos com "simplicidades"!
Vejam só, eu, tal qual todos os outros, sou milhões de biliões de centenas de milhares duma infinidade sem números legíveis, de seres... No meu corpo, no DNA de cada pequena célula, está registada, ficou gravada a informação que vem desde o começo do mundo... mas é tanta, tanta informação que nem sei se algum computador poderá, algum dia "ler" toda esta informação.
Tenho informação até mesmo gravada na pele que cai todos os dias, nas unhas que corto, no sangue  que escorre da ferida, no chichi, no cuspe, no suor que pinga da ponta do nariz... imaginem só quanta informação existe por todo o corpo!
E esta informação vem desde o começo dos tempos... Ok! podemos ir para mais próximo, digamos, desde os primeiros hominídeos, dos homens das cavernas, dos faraós... ok, ok! vamos deixar esses de fora e vejamos de muito mais perto, tenho os olhos do avô da avó dos avós dos meus avô e o nariz da tia da avó dos bisavós dos meus avós... impossível saber de onde vem a informação de cada milímetro do meus corpo!
Como todos, sou uma mistura que vem lá do fundo dos tempos e à qual eu julgo que junto, agora e aqui, mais alguns ingredientes, ao vos perguntar como poderá alguém ser tão, mas tão ignorante que ainda pense que há qualquer coisas como uma "raça pura" de pessoas ou animais ou mesmo plantas!
Vem-me a dúvida! Não tenho a certeza se sou eu que me junto inteira num ser ou se sou juntada por todos os seres que habitam em mim...
Por exemplo, isso sabemos mas não pensamos no assunto (a não ser se estivermos constipados, ou com dores de estomago, ou doentes de qualquer coisa), temos biliões de bactérias e vírus a viverem em simbiose dentro de nós. O que não queremos nem pensar, é que essas bactérias e vírus podem ser os inteligentes, uma espécie de E.T.s a viverem aqui dentro, e a guiarem-nos cada passo, a inspirarem-nos, a fazerem-nos guerrear ou inventar ou "descobrir", tal  deuses omnipotentes, omnipresentes e inteligentes, a quem obedecemos sem discutir!
Por vezes eu desconfio que eles são os deuses que procuramos incessantemente fora de nós! São eles que nos dão os tais momentos de "inteligência" que nos leva à sensibilidade, àquele momento mágico a que chamas "epifania"!

Será que somos simplesmente meios de transporte, a casa... não, o lar, desses micróbios? Provavelmente... e nenhum cientista quer saber dessa hipótese, por razões óbvias! As casas e os veículos não se revoltam contra os seus donos! Depois, se for provado que é verdade, que fazemos se somos "eles", se sem "eles" morremos?
Bom, mas por enquanto estamos no interior... Querem atrever-se a olhar para o mapa do nosso corpo que se estende à nossa volta e que faz parte integrante do mapa interior...
... é só saltar esse instante em que nos sentimos "independentes"!
Já ouviram as novas descobertas dos cientistas sobre a água? Há muito que alguns estudiosos nos falavam das magias da água. Como a água é sensível até a palavras feias ou ditas com irritação. Alguns sabem que a água nos pode salvar e curar de muitas doenças e as religiões sempre têm um ritual da água, que abençoa, batiza, purifica... E recentemente, ficámos a saber que se tocarmos na água, a nossa impressão digital fica ali marcada, uma diferente para cada uma das pessoas...
Agora, ponham-se a imaginar: - Quanta informação estará contida naquele copo de água que a gente toma? E no banho de banheira, do rio, da chuva ou no mar imenso que liga continentes e seres de todo o mundo? Informação sobre toda a vida que nos rodeia, sobre o amor e o ódio, sobre o nascimento de uma criança e o sangue derramado, sobre os gritos de alegria e de dor... E tudo isso codificado em informação que nos é transmitida diariamente e a gente bebe, num copo de água.
E o ar que respiro... inspiro e expiro desde que nasci até ao dia em que disserem que morri! Ninguém o estudou ainda, para além de na escola darem nomes que temos de decorar se queremos passar no exame de química, a alguns dos seus componentes! Mas a gente sabe, mesmo sem ser necessário estudos comprovativos, que trocamos pensamentos através do ar que nos rodeia! O ar deve espalhar os meus pensamentos, os meus gostos e desgostos, o meus amor e a minha raiva, as alegrias e neuras... E há dias que a gente sente que o ar está irrespirável, infestados de tristeza e poluído de raiva... Que ás vezes é bom respirar o ar que envolve alguém bem disposto e é indigesto respirar o ar de alguém mesquinho...
Não me quero alongar mais, porque já me perdi! Mas este mapa que é o meu corpo, é energia e a energia ninguém sabe muito bem o que é, mas liga-nos uns aos outros, às plantas e animais, e, imaginem só, ao universo! Somos um com o universo, dizem alguns! Que posso fazer a não ser perder-me?! Que posso sentir a não ser que sou todos e cada um dos seres a residir neste planeta, mas muito mais! Sou, tenho em mim, o universo!
Sabem, não sei se porque os vírus e bactérias que vivem em mim, são seres superiores, ou simplesmente parvos, se porque gosto de me banhar no mar, se porque tento escolher o ar que respiro, se porque venho duma linhagem de um dinossauro pacifico, vegetariano e que tinha asas para voar, eu preocupo-me muito com tudo isto do que sou e, especialmente, do que passo para os outros...
É complicado... é como dizes, querer "ser templo e fiel"... e me pergunto: templo de quê? e a resposta vem das profundezas do meu ser ou das lonjuras do universo, clara, perfeitamente cristalina: da beleza! Quanto ao ser fiel, só pode ser à beleza! E por isso há esta necessidade diária de querer absorver não só toda a leveza mas especialmente a beleza e transportá-la em informação que vou imprimir em tudo aquilo que tocar, na água e no ar, que quero que, de tanto a repetir, de tanto a olhar, de tanto a memorizar, de tanto a querer tocar, fique registada não só ao meu redor mas no meu DNA.
Tontices? utopias? Quem me pode garantir que são ou que não são?
Para já, não gosto da ideia de poluir o ar à minha volta. Não gosto da ideia de cuspir veneno. Detesto pensar que possa, de algum modo, infetar e fazer gangrenar as informações bonitas que foram e serão passadas para os meus filhos que vão passar para os netos e os netos dos netos dos netos até ao fim dos tempos... e quero que passe para todos aqueles que tiveram a sorte ou o azar de ter provado a água onde eu toquei, ou respirar o ar que eu respiro!

Aceito-me assim mesmo, um mapa desorganizado, disparatado, sem um começo tangível, nem um fim que se veja, um monstro multifacetado, que por vezes se quer quebrar em mil bocados independentes, que se rebela contra deuses e diabos que habitam dentro dele e que o rodeiam. Sou os meus defeitos e qualidades, vindas dos outros tempos, de outras gentes, de outras vidas e que chegaram aqui, neste preciso instante em que alguém, bem longe de mim, me respira...


A pungente e aziática "melancia" de mestre Akira Yamasaki:

melancia

em mil novecentos e sessenta eu tinha oito anos de idade,
os dias áridos e longos nunca chegavam ao fim e eu trazia
aqui dentro mil revoltas sem razões aparentes, motivos de
surras corretivas e constantes do meu pai, devido pirraças
e malcriações, maldades com plantas e bichos e por bater
nos meus irmãos menores, tipos de coisas das quais não
tenho nenhum orgulho;
então quando aprendi a xingar meu pai de corno, viado e
filho da puta, as surras viraram espancamentos medonhos,
de criar bichos e de se ficar mijado no chão;
em mil novecentos e sessenta meu pai trabalhava noite e
dia de meieiro nas terras incertas de um espanhol chamado
périco garcia que tinha uma filha chamada dulcinéia, em
lucélia na alta paulista, onde eu maldizia o tempo por não
passar, quando ouviu falar que melancia tinha rendido
lucro seguro e fácil na safra passada, grana abundante que
muita gente que vivia atolada na penúria tinha lavado a
égua com essa espécie de lavoura e andava posando de
bacana, inclusive diziam, desfilando pra cima e pra baixo
de trator da massey & fergusson e caminhonete zero bala;
meio mordido pela mosca branca da possibilidade de um
ganho fácil mas com um pé na frente e outro atrás, como
qualquer bom japinha, meu pai reservou naquele ano ao
lado dos tradicionais cultivos de feijão, milho e algodão,
de quiabo, abóbora e amendoim, um áspero e inútil trecho
de terra, um oitavo de alqueire se tanto, para experimentar
uns pés de melancia coquinho, como se arriscasse uns
trocos na milhar e centena do primeiro ao quinto e ainda
cercasse com um duque de dezenas, por via das dúvidas,
e me fez encarregado de cuidar da plantação rastejante;
até hoje é um milagre misterioso para mim, os pés de
melancia terem vingado e se espalhado verdejantes no
meio daquelas pedras e tocos ressequidos mas a verdade
é que um dia elas surgiram e cresceram do mesmo jeito
e tamanho, dezenas delas, irmãs gêmeas de tão iguais,
com exceção de uma, a maior, mais exuberante e mais
cobiçada fruta que eu tinha visto na minha vida de dias
infelizes e demorados, onde eu ficava torcendo o tempo
todo para que ela madurasse urgentemente;
naqueles dias lentos e exasperantes, enquanto eu ajeitava
com carinho as melancias com os cabos para cima como
meu pai ensinara para que crescessem uniformes e eu o
observava com afeto e orgulho de filho, todos os dias eu
perguntava a ele se a minha melancia já estava no ponto
e todos os dias ele respondia que ainda não, que estava
verde ainda, que tenha paciência, akira, mas um dia não
aguentei mais a curiosidade e a gula e com um canivete
afiado talhei a bitela de cima a baixo e a coitada ainda
estava branca por dentro, as sementes nem tinham se
formado e eu levei a mais injusta das surras na hora da
janta daquele dia, por desobediência ou talvez porque
meu pai estava puto da vida devido o preço da melancia
que tinha caído no mercado;
então na noite de humilhação e revolta fugi correndo para
o meio das plantações e cego de dor e raiva, com minhas
mãos sedentas de vingança arranquei um monte de pés de
melancia que no dia seguinte estavam mortos e murchos e
quando ri do desespero do meu pai tentando replantar no
chão duro e seco, as raízes sem vida, não deu outra e aí
sim, levei a mais feroz e definitiva surra da minha vida, de
soco,de pau, de pontapé, de cinta e do que ele tivesse na
mão e mais ele me batia, mais eu o xingava de viado filho
da puta;
dois dias depois, como eu não falasse, não comesse, não
me mexesse, não bebesse e nem xingasse, não chorasse,
mijasse ou cagasse, meu pai me examinou, nem tive força
para fugir, e percebeu que meu braço estava quebrado e
com um tranco o colocou no lugar e improvisou uma tala
de madeira para colar a fratura e minha mãe passou iodo,
álcool e mercúrio nos meus hematomas e então eu virei
um menino calado que nunca mais sorriu e de repente os
dias começaram a passar tão rapidamente que eu não
conseguia mais acompanhar.

(akira – 21/04/2016)




O vaso concreto de Luka Magalhães



A poesia atemporal de Enide Santos


Outros tempos

Outros dias, mesmos dias.

Outros tempos

Outras horas, mesmas horas.

Outros sentimentos, mesmos sentimentos.

Os dias têm os mesmos nomes.
Apenas passa-se o tempo.
As horas os seus sessenta minutos.
Ainda que ame ou que vá odiar
Os sentimentos são os mesmos
Passe o tempo que passar.
Apenas o tempo insiste em mudar.




A hesitação poética entre o êxtase e o êxito, de Rosinha Morais


Talvez eu escreva sobre algo
Talvez

Talvez eu escreva sobre o talvez

Talvez sobre a certeza

Talvez eu passe ao presente

Talvez eu escreva sobre o passado

Sobre aquele desejo tão íntimo
Ou, talvez, possa escrever
Que talvez no futuro se realize
Dessa incerteza que talvez o amor seja
Talvez eu fale de amor
Talvez eu grite teu nome
Num poema que talvez escreva
O talvez seja a minha certeza.
Talvez num deslize qualquer

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Os lúcidos, lúdicos e apaixonantes saberes de Mário Neves, exemplificados em três textos de gêneros diferentes:

1) “A vida pode terá a altura de um dia, a largura de um mês e o comprimento de um ano, mas precisamos só de um instante para ser feliz!” (Mário Neves)

2) Um poeta inspirado disse um dia que “a vida é um eterno recomeçar”. Seria isso mesmo? Não seria a vida uma fiandeira a coser os nossos instantes e a uni-los uns nos outros pelas sendas das trevas, pelas veredas do paraíso ou pelos caminhos da eternidade?
Do berço ao túmulo, a nossa frágil vida humana é consumida pelo existir e o tempo; o existir é o nosso maior desafio em ser e não apenas ter e o tempo se perdido é a nossa pior enfermidade.
O tempo implacável que não nos deixa respirar – um suspiro e um pensamento e não estamos mais no mesmo lugar, uma transposição imperceptível e já estamos no futuro. O nosso agora já vem grávido do depois e numa fração de segundos nasce o instante seguinte, que também vai se apagar dando a luz a outro, a outro... A outro... A outro... Até que um dia que não haverá mais nenhum instante pra seguir ou viver.
O nosso instante é semelhante à linha do horizonte e se não contemplarmos sua beleza do lugar que estamos, se ousarmos adiantar o nosso passo para ver mais de perto, corremos o risco de perdê-lo, quanto mais nos aproximamos da linha do horizonte, mais ela se distancia de nós. Nossos instantes são assim. A vida não se vive toda de uma só vez,s e vive em preciosas pepitas que são nossos instantes, assim como não podemos comer um boi inteiro, mas sim durante um ano e em bifes, por que do contrário poderíamos engasgar e não provar todos o sabor do alimento.
Tudo é tão efêmero e buscamos sonhos em longo prazo e perdemos bons momentos tão próximos de nós. Instante é uma súbita emoção de entendimento da essência de alguma coisa, ou é uma exclamação Eureka! Como resposta de nossa introspecção, que num piscar de olhos descobre um caminho e consegue montar uma imagem inteira – uma inspiração.
Carpe diem! Podemos sentir e vivenciar intensamente um instante, mas não aprisioná-lo. Ele só vive uma única vez em nós.
(Escreveu, Mário Neves)




3) Hoje

Mesmo que os relógios parem,
O segundo, os minutos, livres,
Gotejarão implacáveis
Iguais conta-gotas
Formando as horas;
E de gotinha em gotinha
Transbordarão a taça
O início e o fim...

Sem perceber o efeito da rotina,
O dia, a noite, em liberdade,
Brincam de esconde-esconde
Em perfeita harmonia;
Acendendo e apagando
Uma chama frágil, a existência,
O átomo e o tempo...

Mesmo que o céu esteja nublado,
O Sol, a Lua, os Astros
Não entram em férias,
Agem, trabalham
Em perfeito equilíbrio;
E de sóis e de luas
Se faz a eternidade,
Essa ampulheta,
O curso da vida....

A vida é tão curta
Que é preciso viver o hoje
Sem nada adiar
É preciso saborear cada momento,
O espontâneo, a liberdade, a vida.
Carpe Diem, como diria Horácio,
Goze o dia de hoje!
O amanhã só Deus sabe,
Enquanto o dia de hoje
Pode ser todinho teu...

(Mário Neves)

x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x. 
Os vários instantes marcantes de Inês Santos



x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.