segunda-feira, 2 de junho de 2014

Blablablá - A arte de quem tem o que falar

Blablablá e a indefectível "pose oficial" (foto Luka Magalhães)
Todos interagem no Blablablá (foto Andréia Gomes)


Quando o Blablablá iniciou, o Marinho Chagas, lateral esquerdo da seleção canarinho na copa de 1974, já tinha falecido fazia algumas horas. Uma pena! Pois o Blablablá – um dos eventos mensais da Casa Amarela – Espaço Cultural, localizada no distrito de São Miguel, na zona leste de São Paulo – discorria nesse sábado último justamente sobre futebol e arte. O projeto tem por meta defender, fazer o meio-de-campo e atacar assuntos pertinentes à produção cultural no universo periférico. Neste mês de maio, os convocados eram Fernanda Aragão, ex-goleira de futebol, formada em Educação Física (doutora) e cronista, autora do livro “Língua Crônica”; Cleston Teixeira, ator, cantor, compositor, produtor de tv e Ronelson Martins, metroviário, que fora do trabalho dedica sua vida à Comunidade Samba Jorge, um complexo de time de futebol, grupo de resistência cultural através do samba de raiz e os trabalhos filantrópicos da entidade.
O cantor e compositor Zulu de Arrebatá deu o pontapé inicial, com uma saborosa canja musical. A seguir, Cléston fez o primeiro gol, lendo de forma emocionada as letras de duas músicas de Raberuan, cantor e compositor falecido há dois anos, em que ambas prestam homenagem ao futebol, “Rua 2” e “Rua 2/Primeiro Quadro”.
Depois de apresentados os convidados ao público presente, o primeiro tempo teve a presença marcante da ponta-de-lança Fernanda, que foi a primeira a discorrer sobre o tema. Descontraída, fez uma breve explanação autobiográfica, detendo-se na prática do futebol na adolescência e juventude, e de como depois voltou sua atenção para a literatura. “Aos 29, 30 anos, resolvi que queria ser cronista”, disse. Cleston também repassou sua vida durante alguns minutos. Segundo ele, carioca da gema e americano apaixonado e que veio de uma família já envolvida com a prática artística, “futebol e arte estão na mesma proporção”.
Ronelson principiou contando a história pormenorizada do São Jorge, time de São Miguel na ativa desde 1952. Depois explicou que as rodas de samba no fim dos jogos é que fizeram nascer a idéia de um grupo de samba. Por último, explicou que algumas práticas da Comunidade São Jorge acabaram por desembocar em ações sociais que agora fazem parte do métier da entidade. “A gente faz samba de raiz”, afirmou, revelando em seguida o compromisso cultural do Samba Jorge, “pintou a oportunidade de sair dali mas daí a gente perderia a raiz”.
Conforme foram surgindo problematizações diversas trazidas pela atenta platéia, os três atletas foram driblando a curiosidade e fazendo gols cada vez mais certeiros. Fernanda de Aragão, à vontade como uma autêntica camisa 10, fez gols de cabeça, de voleio, de carrinho. Leu textos de Coelho Neto e Lima Barreto, o primeiro defendendo o futebol, o segundo atacando-o, isso lá nos princípios do século XX. Depois a atacante acerta uma bela cabeçada quando fala sem receio sobre a questão de gênero dentro do futebol feminino. “Questionada sobre meus interesses e afirmando que era heterossexual, o treinador sugeriu então que eu viesse vestida de casa e não entrasse no vestiário”, apontou ela com a experiência de seu apuro. Burburinho na platéia em torno do assunto, a provocação é ampliada para a questão de sexualidade dentro do futebol masculino. Zulu relembra o mítico goleiro do EC Bahia, time de várzea de São Miguel, cujo goleiro Gilson, homossexual assumido, ficou famoso não só pelas ótimas defesas, mas também jamais ter permitido qualquer gracejo quanto à sua orientação. Inquirido, Ronelson despista sorrindo, dizendo que no seu time “não tem preconceito, mas acho que no São Jorge não dá não”...
Cleston pega o violão, canta e encanta, mostra um traquejo nos dedos que lembra os dribles de Garrincha, a plateia – participante ativa da conversa – provoca, questiona, cobra, Ronelson é só timidez sorridente, parece um César Sampaio discreto, Fernanda lembra mais um Romário sempre serelepe, não erra o gol. O público presente participa, grita, urra, torce, vibra, também faz gols.
Eu, como sempre, faço o papel de advogado do diabo, tento acabar o jogo mas todos querem a prorrogação, a cobrança por pênaltis. Cleston reafirma a importância do Bom Senso FC e do mítico jogador Afonsinho, Fernanda diz que, em se tratando de cultura artística ou esportiva, admite “as duas condições, tanto o consumo pelo consumo quanto também o consumo que traz algo a mais”. E Ronelson, sábio e encabulado, pede desculpas por “não saber falar”. Sofro esse gol, mas empato: nós é que lhe devemos desculpas por talvez não saber ouvi-lo, Ronelson!
Chegamos ao fim, Cleston Teixeira dedilha o violão, solta a voz, todos nos abraçamos. Nesse jogo não houve perdedor.

Escobar Franelas
Akira Yamasaki, sempre certeiro nas palavras (foto Luka Magalhães)
Os convidados diante do mediador (foto Andreia Gomes)


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