No dia 30 de abril realizamos na CA mais uma roda de criação literária, o Inéditos & Inacabados, que já está no seu 2º ano. Dessa vez tivemos a mediação luxuosa de Eliana Mara, educadora e poeta da estirpe dos baitas, que com seu carisma, sua sensibilidade arguta e conhecimentos estratosféricos que extrapolam em quilômetros aquilo que poderíamos denominar senso comum, levou-nos a um passeio não descritível pelo tapete mágico da literatura.
Os textos colaborativos - que foram colocados em finas porcelanas para degustação e consideração dos convivas - estão todos abaixo, inaugurados pelo mote provocativo de Eliana.
Sueli Kimura vem comprovando a cada encontro que realmente alguns dos melhores perfumes vêm realmente embalados nos menores frascos:
Pinga a gota
Antecedendo o fim
Na poça
Gota caindo
Perpetua o instante
Antes do fim
Efêmero
Intenso instante
Emoção registrada
Na mente
HD em gigabyte
É sempre um bálsamo poder beber e comer as reflexões de
Angelina Neves, escritora e educadora moçambicana, que enviou-nos um prato saboroso e desconcertante. O Brasil, a terra toda, agradecem, Angi querida!
P.S. indicativo!!
1. Se não gostares deita
fora!
2. Se achares grande de
mais, corta!
3. Se achares que vale a
pena... "respira-me ai no Brasil"!!!
Obrigado pelo desafio.
Abraços do tamanho do
mundo!
O mapa de mim!
Tentei... como
divertimento, tento de quando em vez, seguir o meu mapa, o mapa simples, que
não parece muito grande nem muito complicado, se acreditarmos no que nos dizem
na escola... É verdade, na escola sempre encontram uma maneira de nos tapar os
olhos com "simplicidades"!
Vejam só, eu, tal qual
todos os outros, sou milhões de biliões de centenas de milhares duma infinidade
sem números legíveis, de seres... No meu corpo, no DNA de cada pequena célula,
está registada, ficou gravada a informação que vem desde o começo do mundo...
mas é tanta, tanta informação que nem sei se algum computador poderá, algum dia
"ler" toda esta informação.
Tenho informação até mesmo
gravada na pele que cai todos os dias, nas unhas que corto, no sangue que escorre da ferida, no chichi, no cuspe,
no suor que pinga da ponta do nariz... imaginem só quanta informação existe por
todo o corpo!
E esta informação vem
desde o começo dos tempos... Ok! podemos ir para mais próximo, digamos, desde
os primeiros hominídeos, dos homens das cavernas, dos faraós... ok, ok! vamos
deixar esses de fora e vejamos de muito mais perto, tenho os olhos do avô da
avó dos avós dos meus avô e o nariz da tia da avó dos bisavós dos meus avós...
impossível saber de onde vem a informação de cada milímetro do meus corpo!
Como todos, sou uma
mistura que vem lá do fundo dos tempos e à qual eu julgo que junto, agora e
aqui, mais alguns ingredientes, ao vos perguntar como poderá alguém ser tão,
mas tão ignorante que ainda pense que há qualquer coisas como uma "raça
pura" de pessoas ou animais ou mesmo plantas!
Vem-me a dúvida! Não tenho
a certeza se sou eu que me junto inteira num ser ou se sou juntada por todos os
seres que habitam em mim...
Por exemplo, isso sabemos
mas não pensamos no assunto (a não ser se estivermos constipados, ou com dores
de estomago, ou doentes de qualquer coisa), temos biliões de bactérias e vírus
a viverem em simbiose dentro de nós. O que não queremos nem pensar, é que essas
bactérias e vírus podem ser os inteligentes, uma espécie de E.T.s a viverem
aqui dentro, e a guiarem-nos cada passo, a inspirarem-nos, a fazerem-nos
guerrear ou inventar ou "descobrir", tal deuses omnipotentes, omnipresentes e
inteligentes, a quem obedecemos sem discutir!
Por vezes eu desconfio que
eles são os deuses que procuramos incessantemente fora de nós! São eles que nos
dão os tais momentos de "inteligência" que nos leva à sensibilidade,
àquele momento mágico a que chamas "epifania"!
Será que somos
simplesmente meios de transporte, a casa... não, o lar, desses micróbios?
Provavelmente... e nenhum cientista quer saber dessa hipótese, por razões
óbvias! As casas e os veículos não se revoltam contra os seus donos! Depois, se
for provado que é verdade, que fazemos se somos "eles", se sem
"eles" morremos?
Bom, mas por enquanto
estamos no interior... Querem atrever-se a olhar para o mapa do nosso corpo que
se estende à nossa volta e que faz parte integrante do mapa interior...
... é só saltar esse
instante em que nos sentimos "independentes"!
Já ouviram as novas descobertas
dos cientistas sobre a água? Há muito que alguns estudiosos nos falavam das
magias da água. Como a água é sensível até a palavras feias ou ditas com
irritação. Alguns sabem que a água nos pode salvar e curar de muitas doenças e
as religiões sempre têm um ritual da água, que abençoa, batiza, purifica... E
recentemente, ficámos a saber que se tocarmos na água, a nossa impressão
digital fica ali marcada, uma diferente para cada uma das pessoas...
Agora, ponham-se a
imaginar: - Quanta informação estará contida naquele copo de água que a gente
toma? E no banho de banheira, do rio, da chuva ou no mar imenso que liga
continentes e seres de todo o mundo? Informação sobre toda a vida que nos
rodeia, sobre o amor e o ódio, sobre o nascimento de uma criança e o sangue
derramado, sobre os gritos de alegria e de dor... E tudo isso codificado em
informação que nos é transmitida diariamente e a gente bebe, num copo de água.
E o ar que respiro...
inspiro e expiro desde que nasci até ao dia em que disserem que morri! Ninguém
o estudou ainda, para além de na escola darem nomes que temos de decorar se
queremos passar no exame de química, a alguns dos seus componentes! Mas a gente
sabe, mesmo sem ser necessário estudos comprovativos, que trocamos pensamentos
através do ar que nos rodeia! O ar deve espalhar os meus pensamentos, os meus
gostos e desgostos, o meus amor e a minha raiva, as alegrias e neuras... E há
dias que a gente sente que o ar está irrespirável, infestados de tristeza e
poluído de raiva... Que ás vezes é bom respirar o ar que envolve alguém bem
disposto e é indigesto respirar o ar de alguém mesquinho...
Não me quero alongar mais,
porque já me perdi! Mas este mapa que é o meu corpo, é energia e a energia
ninguém sabe muito bem o que é, mas liga-nos uns aos outros, às plantas e
animais, e, imaginem só, ao universo! Somos um com o universo, dizem alguns!
Que posso fazer a não ser perder-me?! Que posso sentir a não ser que sou todos
e cada um dos seres a residir neste planeta, mas muito mais! Sou, tenho em mim,
o universo!
Sabem, não sei se porque
os vírus e bactérias que vivem em mim, são seres superiores, ou simplesmente
parvos, se porque gosto de me banhar no mar, se porque tento escolher o ar que
respiro, se porque venho duma linhagem de um dinossauro pacifico, vegetariano e
que tinha asas para voar, eu preocupo-me muito com tudo isto do que sou e,
especialmente, do que passo para os outros...
É complicado... é como
dizes, querer "ser templo e fiel"... e me pergunto: templo de quê? e
a resposta vem das profundezas do meu ser ou das lonjuras do universo, clara,
perfeitamente cristalina: da beleza! Quanto ao ser fiel, só pode ser à beleza!
E por isso há esta necessidade diária de querer absorver não só toda a leveza
mas especialmente a beleza e transportá-la em informação que vou imprimir em
tudo aquilo que tocar, na água e no ar, que quero que, de tanto a repetir, de
tanto a olhar, de tanto a memorizar, de tanto a querer tocar, fique registada
não só ao meu redor mas no meu DNA.
Tontices? utopias? Quem me
pode garantir que são ou que não são?
Para já, não gosto da
ideia de poluir o ar à minha volta. Não gosto da ideia de cuspir veneno.
Detesto pensar que possa, de algum modo, infetar e fazer gangrenar as
informações bonitas que foram e serão passadas para os meus filhos que vão
passar para os netos e os netos dos netos dos netos até ao fim dos tempos... e
quero que passe para todos aqueles que tiveram a sorte ou o azar de ter provado
a água onde eu toquei, ou respirar o ar que eu respiro!
Aceito-me assim mesmo, um
mapa desorganizado, disparatado, sem um começo tangível, nem um fim que se
veja, um monstro multifacetado, que por vezes se quer quebrar em mil bocados
independentes, que se rebela contra deuses e diabos que habitam dentro dele e
que o rodeiam. Sou os meus defeitos e qualidades, vindas dos outros tempos, de
outras gentes, de outras vidas e que chegaram aqui, neste preciso instante em
que alguém, bem longe de mim, me respira...
A pungente e aziática "melancia" de mestre Akira Yamasaki:
melancia
em mil novecentos e sessenta eu tinha oito anos de idade,
os dias áridos e longos nunca chegavam ao fim e eu trazia
aqui dentro mil revoltas sem razões aparentes, motivos de
surras corretivas e constantes do meu pai, devido pirraças
e malcriações, maldades com plantas e bichos e por bater
nos meus irmãos menores, tipos de coisas das quais não
tenho nenhum orgulho;
então quando aprendi a xingar meu pai de corno, viado e
filho da puta, as surras viraram espancamentos medonhos,
de criar bichos e de se ficar mijado no chão;
em mil novecentos e sessenta meu pai trabalhava noite e
dia de meieiro nas terras incertas de um espanhol chamado
périco garcia que tinha uma filha chamada dulcinéia, em
lucélia na alta paulista, onde eu maldizia o tempo por não
passar, quando ouviu falar que melancia tinha rendido
lucro seguro e fácil na safra passada, grana abundante que
muita gente que vivia atolada na penúria tinha lavado a
égua com essa espécie de lavoura e andava posando de
bacana, inclusive diziam, desfilando pra cima e pra baixo
de trator da massey & fergusson e caminhonete zero bala;
meio mordido pela mosca branca da possibilidade de um
ganho fácil mas com um pé na frente e outro atrás, como
qualquer bom japinha, meu pai reservou naquele ano ao
lado dos tradicionais cultivos de feijão, milho e algodão,
de quiabo, abóbora e amendoim, um áspero e inútil trecho
de terra, um oitavo de alqueire se tanto, para experimentar
uns pés de melancia coquinho, como se arriscasse uns
trocos na milhar e centena do primeiro ao quinto e ainda
cercasse com um duque de dezenas, por via das dúvidas,
e me fez encarregado de cuidar da plantação rastejante;
até hoje é um milagre misterioso para mim, os pés de
melancia terem vingado e se espalhado verdejantes no
meio daquelas pedras e tocos ressequidos mas a verdade
é que um dia elas surgiram e cresceram do mesmo jeito
e tamanho, dezenas delas, irmãs gêmeas de tão iguais,
com exceção de uma, a maior, mais exuberante e mais
cobiçada fruta que eu tinha visto na minha vida de dias
infelizes e demorados, onde eu ficava torcendo o tempo
todo para que ela madurasse urgentemente;
naqueles dias lentos e exasperantes, enquanto eu ajeitava
com carinho as melancias com os cabos para cima como
meu pai ensinara para que crescessem uniformes e eu o
observava com afeto e orgulho de filho, todos os dias eu
perguntava a ele se a minha melancia já estava no ponto
e todos os dias ele respondia que ainda não, que estava
verde ainda, que tenha paciência, akira, mas um dia não
aguentei mais a curiosidade e a gula e com um canivete
afiado talhei a bitela de cima a baixo e a coitada ainda
estava branca por dentro, as sementes nem tinham se
formado e eu levei a mais injusta das surras na hora da
janta daquele dia, por desobediência ou talvez porque
meu pai estava puto da vida devido o preço da melancia
que tinha caído no mercado;
então na noite de humilhação e revolta fugi correndo para
o meio das plantações e cego de dor e raiva, com minhas
mãos sedentas de vingança arranquei um monte de pés de
melancia que no dia seguinte estavam mortos e murchos e
quando ri do desespero do meu pai tentando replantar no
chão duro e seco, as raízes sem vida, não deu outra e aí
sim, levei a mais feroz e definitiva surra da minha vida, de
soco,de pau, de pontapé, de cinta e do que ele tivesse na
mão e mais ele me batia, mais eu o xingava de viado filho
da puta;
dois dias depois, como eu não falasse, não comesse, não
me mexesse, não bebesse e nem xingasse, não chorasse,
mijasse ou cagasse, meu pai me examinou, nem tive força
para fugir, e percebeu que meu braço estava quebrado e
com um tranco o colocou no lugar e improvisou uma tala
de madeira para colar a fratura e minha mãe passou iodo,
álcool e mercúrio nos meus hematomas e então eu virei
um menino calado que nunca mais sorriu e de repente os
dias começaram a passar tão rapidamente que eu não
conseguia mais acompanhar.
(akira – 21/04/2016)
O vaso concreto de Luka Magalhães
A poesia atemporal de
Enide Santos
Outros tempos
Outros dias, mesmos dias.
Outros tempos
Outras horas, mesmas horas.
Outros sentimentos, mesmos sentimentos.
Os dias têm os mesmos nomes.
Apenas passa-se o tempo.
As horas os seus sessenta minutos.
Ainda que ame ou que vá odiar
Os sentimentos são os mesmos
Passe o tempo que passar.
Apenas o tempo insiste em mudar.
A hesitação poética entre o êxtase e o êxito, de
Rosinha Morais
Talvez eu escreva sobre algo
Talvez
Talvez eu escreva sobre o talvez
Talvez sobre a certeza
Talvez eu passe ao presente
Talvez eu escreva sobre o passado
Sobre aquele desejo tão íntimo
Ou, talvez, possa escrever
Que talvez no futuro se realize
Dessa incerteza que talvez o amor seja
Talvez eu fale de amor
Talvez eu grite teu nome
Num poema que talvez escreva
O talvez seja a minha certeza.
Talvez num deslize qualquer
x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.
Os lúcidos, lúdicos e apaixonantes saberes de Mário Neves, exemplificados em três textos de gêneros diferentes:
1) “A vida pode terá a altura de um dia, a largura de um mês e o comprimento de um ano, mas precisamos só de um instante para ser feliz!” (Mário Neves)
2) Um poeta inspirado disse um dia que “a vida é um eterno recomeçar”. Seria isso mesmo? Não seria a vida uma fiandeira a coser os nossos instantes e a uni-los uns nos outros pelas sendas das trevas, pelas veredas do paraíso ou pelos caminhos da eternidade?
Do berço ao túmulo, a nossa frágil vida humana é consumida pelo existir e o tempo; o existir é o nosso maior desafio em ser e não apenas ter e o tempo se perdido é a nossa pior enfermidade.
O tempo implacável que não nos deixa respirar – um suspiro e um pensamento e não estamos mais no mesmo lugar, uma transposição imperceptível e já estamos no futuro. O nosso agora já vem grávido do depois e numa fração de segundos nasce o instante seguinte, que também vai se apagar dando a luz a outro, a outro... A outro... A outro... Até que um dia que não haverá mais nenhum instante pra seguir ou viver.
O nosso instante é semelhante à linha do horizonte e se não contemplarmos sua beleza do lugar que estamos, se ousarmos adiantar o nosso passo para ver mais de perto, corremos o risco de perdê-lo, quanto mais nos aproximamos da linha do horizonte, mais ela se distancia de nós. Nossos instantes são assim. A vida não se vive toda de uma só vez,s e vive em preciosas pepitas que são nossos instantes, assim como não podemos comer um boi inteiro, mas sim durante um ano e em bifes, por que do contrário poderíamos engasgar e não provar todos o sabor do alimento.
Tudo é tão efêmero e buscamos sonhos em longo prazo e perdemos bons momentos tão próximos de nós. Instante é uma súbita emoção de entendimento da essência de alguma coisa, ou é uma exclamação Eureka! Como resposta de nossa introspecção, que num piscar de olhos descobre um caminho e consegue montar uma imagem inteira – uma inspiração.
Carpe diem! Podemos sentir e vivenciar intensamente um instante, mas não aprisioná-lo. Ele só vive uma única vez em nós.(Escreveu, Mário Neves)
3) Hoje
Mesmo que os relógios parem,
O segundo, os minutos, livres,
Gotejarão implacáveis
Iguais conta-gotas
Formando as horas;
E de gotinha em gotinha
Transbordarão a taça
O início e o fim...
Sem perceber o efeito da rotina,
O dia, a noite, em liberdade,
Brincam de esconde-esconde
Em perfeita harmonia;
Acendendo e apagando
Uma chama frágil, a existência,
O átomo e o tempo...
Mesmo que o céu esteja nublado,
O Sol, a Lua, os Astros
Não entram em férias,
Agem, trabalham
Em perfeito equilíbrio;
E de sóis e de luas
Se faz a eternidade,
Essa ampulheta,
O curso da vida....
A vida é tão curta
Que é preciso viver o hoje
Sem nada adiar
É preciso saborear cada momento,
O espontâneo, a liberdade, a vida.
Carpe Diem, como diria Horácio,
Goze o dia de hoje!
O amanhã só Deus sabe,
Enquanto o dia de hoje
Pode ser todinho teu...
(Mário Neves)
x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.
Os vários instantes marcantes de Inês Santos
x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.