segunda-feira, 14 de novembro de 2016

como foi o 50o. Sarau da Casa Amarela, por Claudinei Vieira


Os grandes signos deste Sarau da Casa Amarela foram a Amizade, a Saudade, Pessoas especiais, tudo embalado na mais pura emoção. Como acontece de ser sempre, no mais alto grau, no mais profundo e verdadeiro, na Casa Amarela, capitaneado pelo samurai mestre poeta Akira Yamasaki.
Homenagem a Raberuan (tão vivo ainda, tão marcante ainda, tão artista, tão presente) a quem não conheci pessoalmente, mas aprendi a amar e respeitar só pelo puro modo como vejo o afeto e a energia e o amor em cada um dos que o conheceram. Homenagear Raberuan é, portanto, celebrar a amizade e a arte.
Adri Aleixo lançou 'Pés' (editora Patuá) e junto com Norma De Souza Lopes(que também estava com seu 'Borda', da Patuá) sacudiram a Casa Amarela com uma massa enorme de carisma, beleza, alegria, poesia, poesia, poesia! Puras poesias em forma de pessoas. E Casa Amarela sacudiu Adri e Norma que, volta e meia, diziam que isso está lindo demais, "'não quero voltar mais pra casa, quero ficar aqui!" <3
Sacolinha Ademiro é uma imensidão. Sempre que pensava nele, pelo tanto que já realizou, escreveu, publicou, discutiu, armou, artistizou, me parecia que só podia ser uma pessoa de , pelo menos, um sessenta anos! E não! É praticamente um garoto. Se já tanto fez, para nossa alegria a expectativa portanto é realize ainda muito mais. Tanto mais. Lançou seu sétimo livro agora, 'Brechós, Meia-noite e Fantasia'.
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Sempre saímos, ao final de uma noite de um sarau da Casa Amarela praticamente exaustos. De tanta beleza. De tanta poesia. E, ao mesmo tempo, renovados, leves, absurdamente antenados, o coração repleto de amor.
Casa Amarela é pura poesia.

domingo, 30 de outubro de 2016

Inéditos & inacabados: mediação de Mário Neves

I&I: Mário Neves na condução da conversa (foto Sueli Kimura)

A partir de um tema muito sugestivo, "Janela", o poeta e performer Mário Neves (convidado para mediar a roda literária deste mês), conduziu com ares de realeza o encontro. Antes porém, Sueli Kimura proporcionou-nos momentos de relaxamento através de aluns exercícios respiratórios e físicos, seguidos por uma provocação: recitar diversos trava-línguas, tudo regado a café, sucos, chás, doces e salgados que o povo trouxe sem dó, para nosso deleite. 
Na seuqência, os textos e fotos. Desfrutem! Degustem!

Paulinho Dhi Andrade

"MEU REFLEXO"
Abri minha janela agora, e a única coisa que consegui ver foi um abacateiro triste e só lá no quintal da frente. Sei que somos parecidos porque usamos a mesma janela como espelho!
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Sueli Kimura:

(texto 1)
Há muito tempo
Eu saindo da adolescência
Um amigo poeta me disse
que, fosse eu uma fruta
seria um pêssego carnudo
Para comer
Sentindo o aroma
Mordendo lentamente
Sujando a boca
Foi tanta delicadeza que
se ele quisesse
Teria aberto a janela
Da minha virgindade..

=*=*=*=

(texto 2)
(acróstico)
Jardim florido
Nele habitam
Lagartas e borboletas

=*=*=*=

(texto 3)
Olhar perdido
Janela ou porta
Qual escolher?

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Luka Magalhães

(texto 1)
estranha vidraça
que nos mostra a alma
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(texto 2)
alma imaculada
que trespassa
o vidro

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Rosinha Morais:

(texto 1) Intervalo
Sempre que estou ao teu lado Sinto a plenitude De uma vida completa Sempre que estás ao meu lado Sinto a felicidade Que em mim desperta O sempre é tão volátil Ainda assim sublime Porque o mundo é um instante Que cabe na loucura Do ser profano Que não interpreta sonho Vive sua realidade Sem promessas de paraíso Nem medo de castigos Mas com a certeza De ser amado E amar Ainda que o amor atravesse O intervalo do pecado.
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(texto 2)
Distante
Está tão escuro aqui dentro, e frio e silencioso. Falo comigo mesma e é como se os meus pensamentos gritassem. Mas me sinto confortável. Você pode achar loucura eu me sentir confortável quando acabo de falar como é aqui dentro. Porém, eu realmente estou confortável.  Me incomoda apenas quando meu pensamento fica falando, nem sempre gosto do que ele fala, porque algumas vezes ele me diz para eu me mover, olhar para fora, respirar um novo ar. Como poderia fazer isso? Ele não entende que eu tenho medo. Sei que você vai me julgar. Todos me julgam, mas eu não inventei esse medo. Teve um tempo bem diferente, onde tudo era risos e luz e calor. Quando penso nesse tempo me encolho mais aqui dentro, porque o frio e a escuridão aumentam, aí eu calo o pensamento e volto para o conforto do meu silêncio.
Se minha voz ainda existisse eu contaria para você. Ela se perdeu naquele dia. Eu gritei tanto, pedi que alguém me ajudasse, os meninos riam e as meninas pediam para eles continuarem porque eu estava gostando. Não importava o quanto eu dissesse não, não importava o quanto eu chorasse, elas riam, eles riam, dançando em volta de mim.  Não sei quanto tempo durou, não sei mais se foi real ou fantasia. Lembro da última palavra que eu disse, do meu último grito: Mãe!
Quando todos foram embora, eu continuei lá, meu corpo doía e eu sentia frio, eu acho, porque tremia, só havia uma fonte de calor, que escorria entre minhas pernas. A noite tornou-se madrugada e a madrugada dia. Eu continuei lá. O sol batia em meu rosto, mas eu não sentia, o frio não passava, a dor insistia, o sangue secava, meu coração secava, meu mundo secava. Não havia mais lágrimas, não havia nada, apenas eu. Eu continuei lá. Acho que desmaiei, ou algo parecido, não tinha sede ou fome, apenas frio e dor. O dia voltou a se tornar noite, a noite madrugada e um novo dia. Eu continuei lá. Não sei quanto tempo eu continuei lá. Sei que alguém me viu. Eu tive medo e vergonha e tentei me arrastar. Depois ouvi muitas vozes, arrancava a terra com as mãos tentando fugir. Reconheci uma voz, era a minha mãe. – Mãe! – Gritei, mas minha voz tinha sido silenciada, ela não me ouvia.
Ela não me ouvia e chorava.
Pela primeira vez, naqueles últimos dias, eu senti um calor bom, o calor das mãos e dos lábios dela, um beijo e uma carícia e a sensação que enfim eu estava segura.
Foram dias de entradas e saídas. Muitas pessoas. Elas conversavam, faziam perguntas, queriam saber detalhes, nomes e muitas coisas que eu não entendia. Minha mãe não saiu do meu lado, eu não comia e ela não comia. Algumas pessoas da família apareceram, algumas amigas da minha mãe apareceram, meu pai apareceu, os parentes do meu pai, meus professores. Outra vez eu não tinha ideia de quanto tempo fiquei ali, naquele hospital.
Quando cheguei em casa, minha mãe, sempre ela, cuidou de mim, tentando me trazer de volta, ela pedia, implorava por sua menina, não sabia que a menina havia sido destruída e que só restava eu. As visitas continuaram por um tempo, mas aos poucos foram rareando, apenas ela continuou, incansável, tentando levar uma vida normal, mas também nunca mais voltou a ser a mesma. Convidava pastores, padres, psicólogos, terapeutas, estudantes. Lia para mim, tudo o que aparecia ou parecia que despertaria o meu interesse. Qualquer nova pesquisa que saia, ela ia atrás. Nunca entregou os pontos. Me dizia sempre que eu deveria abrir algumas janelas por onde eu pudesse escapar, mesmo que por alguns minutos. Que eu era sua passarinha que adorava cantar e voar, que eu deveria tentar mais uma vez. Ela não entendia que em meu casulo não existiam janelas. Que não havia mais canto, não existia mais asas. Não é que eu não queira sair, abrir a janela e sentir o sol, ouvir o canto dos pássaros ou o uivo do vento. É só porque, mesmo aqui, só existe uma certeza. Eu continuei lá.

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Manogon:

"Pelo vidro à espera da esperança"

São nove horas e quarenta e cinco minutos de uma manhã ensolarada. O dia raiou cedo e tão logo se apresentou, parece que trataram de acender o forno, pois o clima está quente e extremamente abafado. Mal iniciei os afazeres diários e já tive de interromper para tomar um banho quase frio. Nada pior que suor escorrendo no rosto inteiro, deixando a camiseta em situação calamitosa ou então, escorrendo pelas costas até chegar no rego da bunda.

Isso não tem nada de mais. Afinal, em dias quentes assim, impossível ficar com um banho só ou sem banho algum. Mas não eram nem 7 horas e já estava no segundo banho. Peguei minha sombrinha e meu chapéu (recomendações de minha mãezinha, que mesmo eu já sendo adulta, insiste em me tratar como se tivesse 9 anos) e saí na direção da padaria.

Perdida em pensamentos, andei pelas calçadas pacatas da minha modesta cidade interiorana, daquelas que todos se conhecem ou sabem quem é quem. Vi um certo agrupamento mais adiante, mas como estava com pressa não me interessei. Comprei meus pães e já ia saindo quando a dona Maria de Lourdes, uma velhinha simpática, mas fofoqueira de tudo, não resistiu e me veio com o famoso "Você viu o que aconteceu?" Claro que não, pensei. Mas já sabia que o relato em pormenores viria em seguida.

Trinta minutos depois estava indo ao encontro do pequeno alvoroço. Todos falavam entre si e, por vezes, um apontava na direção da casa. Fui me aproximando e já veio a Madalena, com cara de sofrimento - será que está tudo bem? - mas como eu estava sem a bola de cristal, não consegui adivinhar para responder. Ela morreu? - indagou outra. Que nada, deve estar dormindo ou se mandou. - sentenciou outro. Ali, em frente à casa de dona Gertrudes, cada um tinha uma opinião, mas ninguém tinha coragem de bater à porta ou entrar lá. Não por ela ser má, mas por outros motivos.

Dona Gertrudes é uma solteirona muito conhecida no bairro. Sem parentes, sem amigos que frequentem sua casa, presença quase imperceptível. Os pais faleceram quando ela ainda era jovem e, desde então, passou a viver sozinha. Sempre muito recatada, com roupas tão discretas que mais pareciam dos filmes de época. É o tipo de pessoa que entra e sai do mundo sem deixar muitos vestígios. Creio que até poderia ser assim, não fosse por um acontecimento não muito distante no tempo. Coisa de uns 5 anos, mais ou menos.

Gertrudes sempre manteve hábitos precisos, executados impreterivelmente nas mesmas sequências, como se fossem programados para acontecer mesmo que não houvesse algum comando para tal. Acordava cedo, arrumava a casa (como se precisasse!), saía em passos apressados até a padaria onde tomava um café básico com um pão fresco com pouca manteiga. Trabalhava na biblioteca municipal, no setor de arquivo, seu mundo. Ali, em companhia de livros e papeis tinha tudo de que precisava, nada mais. Dali voltava para casa, preparava sua comida ouvindo uma radinho de pilha, sentava ante a janela para apreciar o por do sol, hábito herdado de sua mãe, jantava em frente a TV e dormia cedo, preparada para reiniciar a programação no dia seguinte. Gostava de trabalhar até mesmo em fins de semana, pois não tinha o hábito de viajar ou passear pra fora da cidade, haja vista que os pais morreram em um acidente com o ônibus de turismo. Assim sendo, juntava sua paixão com o oportunismo do seu chefe, funcionária exemplar a um custo baixo. Uma das poucas vezes que saiu de sua rotina foi o motivo que a levou a ser o centro dos questionamentos de hoje. 

Seu Cléber, o chefe, mandou que fosse até a cidade vizinha para recolher uma papelada que pertencia ao centro de conservação dos parques. Como ela não possuía carro e tinha trauma de ônibus, pegou sua bicicleta e saiu pela estradinha. Só que chegou o horário previsto da volta e nada de Gertrudes aparecer. Passaram-se uma, duas, três horas e nada! Seu Cléber estava prestes a fazer o sacrifício de tirar seu carro da garagem para ir atrás dela quando o telefone tocou. Ela sofreu um acidente, mas estava bem, apenas em observação.

Oligário Meira, um representante comercial espalhafatoso da fabricante de barcos Maresia, foi até a cidade buscar uma encomenda. Distraído e ocupado em comer um lanche, olhar o itinerário e dar pancadinhas no relógio de pulso para conseguir ver as horas direito, não conseguiu perceber a bicicleta que fazia uma curva acentuada e a acertou, levando sua condutora ao chão. Ele ficou tão atrapalhado, sentido com o ocorrido, que se dispôs a acompanhar o trâmite todo do socorro, internação e o que mais precisasse. Ainda mais quando soube que a moça não tinha família.

Desses dias, entre idas e vindas, ficaram a amizade - que finalmente conseguiu fazer -, a lembrança da forma atabalhoada que tudo se deu, e um laço muito forte. Não demorou muito para que Olegário a pedisse em namoro. Tradicional como sempre foi, Gertrudes, exigiu que eles namorassem em público, o que, é evidente, gerou muitas conversas em rodinhas, muitos dedos apontados, muito assunto para os fofoqueiros de plantão.

Em pouco tempo, o namoro na praça já não era regra e sim, exceção. Sua rotina de fim de semana incluía ficar à espreita na janela, aguardando a chegada de Olegário. A molecada já não fazia mais graça porque ela já não era mais "a solteirona", "encalhada". Tudo parecia bem e se encaminhando para o matrimônio. E foi aí que o doce desandou. Olegário fez uma investida, querendo algo mais que uns beijinhos, ela recuou e o expulsou de casa, dizendo que "não era dessas" e que só perderia a virgindade depois de casar. Virgindade! Naquela idade! Ela nunca... nunca..., ficou a mil a cabeça de Olegário. Ao mesmo tempo que deu um certo prazer de ser o primeiro, entrou em pânico. E se ela estranhasse e não o aceitasse? Se saísse correndo pela rua? Vexame! E se tivesse um piripaque e morresse ali mesmo, na cama, na lua de mel? Tentou levar adiante, compro alianças, marcou casamento... ela comprou vestido de noiva, fez planos de reformar a casa e até, quem sabe, convidar a vizinhança.

Faltavam poucos dias. Olegário, na tentativa de evitar maior vexame, tentou agarrar Gertrudes novamente. Afinal, quem segura desejo assim tanto tempo? Já não eram crianças e estavam comprometidos? Ora bolas! Que mal tem? Pensava em tudo isso, mas não foi bem recebido. Discutiram feio e ele saiu batendo a porta. Ela tentou ir atrás pedindo pra ele voltar e conversar. Não teve jeito. Ele disse que talvez voltasse. E assim ficou. Ela acreditou.

Mas Olegário, seja por ter se livrado de seus medos, seja por não querer saber mais dela, não apareceu no dia seguinte, nem no outro dia, na outra semana, no outro mês, ano... anos. Gertrudes, com a frustração, caiu em desgraça e não queria saber de mais nada. Nos primeiros dias chorava na janela, esperando por ele. No dia que seria o casamento, ela se vestiu de noiva e ficou ali, diante da janela, esperando, esperando, esperando. Uma semana se passou e ela ainda estava com o vestido, já todo amassado e rasgado em alguns pontos por ela se enroscar nas coisas. Seu Cléber a procurou, insistindo que ela reagisse. O máximo que conseguiu foi que trocasse o vestido e, assim, teve de fazer o que não queria, entregar sua demissão.

De casa de solteirona-ex-noiva-quasecasada a casa da tia louca foi apenas questão de detalhes e de alguns moleques bagunçando após a saída da escola. Ela já não saída de casa, talvez na esperança dele voltar a qualquer hora, o receio de não achá-la, talvez por não querer ver ninguém e rirem dela. Comia o essencial. Mesmo assim, não perdeu o hábito de sentar-se à beira da janela para supostamente apreciar o por do sol e, claro, esperar Olegário.

Mesmo depois desse tempo, nunca a janela deixou de ser aberta. Exceto nesta manhã, que ninguém a viu abrir as 5 horas, nem a silhueta da dona dela no vidro aos primeiros raios solares. E como tudo é novidade em cidade pequena, é por esse motivo que agora, faltando poucos minutos para as 10 horas da manhã, forma-se uma legião de curiosos em volta da casa dela, inclusive eu, que não sou de ferro, né.

Já quase meio-dia. Seu Cléber, o mais próximo de um conhecido, foi chamado. Ele tentou chamar. Nada! Esperaram a guarda. Estavam atendendo uma emergência. A fuzarca aumenta, até que seu Cléber não suporta mais. A janela, que até então serviu de observatório do mundo externo e das belezas do céu, transforma-se em porta de acesso, é forçada e arrombada.


Deitada em sua cama, vestida de noiva, com a cabeça voltada para a janela, jaz um corpo desnutrido, definhado, talvez sem forças até para pedir socorro. Mas o rosto está sublime, com leve toque de riso no canto da boca. Quem sabe dona Gertrudes tenha encontrado outro amor, um barqueiro que a leve ao altar de Nossa Senhora? Quem sabe ela não encontre uma janela para nos observar e continuar contemplando as belezas do céu ao por do sol? Quem sabe? Não a conhecia. Nunca trocamos nada além de olhares furtivos na padaria, mas não consigo deixar de pensar em sua história, em como poderia ser diferente se a natureza humana não se baseasse em pré-conceitos e em convenções estabelecidas pela sociedade, em certas regras que às vezes se tornam grades de uma prisão imaginária, mas difícil de se libertar.


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quarta-feira, 19 de outubro de 2016

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Inéditos & Inacabados de agosto: mediação de Inês Santos

Iniciamos a roda de conversa com uma vivência física inicial proporcionada por Sueli Kimura. Após, a roda de conversa fluiu com as primeiras impressões sobre o tema proposto:


Impressões gravadas:

https://soundcloud.com/escobar-franelas/sets/ineditos-e-inacabados-ago2016


O texto de Escobar Franelas:


O trem amarelo 

O trem partiu da estação Casa Amarela num certo dia do inverno de 2016. Era uma viagem longa, para uma região campestre muito remota, incrustada entre o mar e as montanhas. Todos estavam felizes, eram ganhadores de um concurso literário baseado num poema de Olegário Mariano (colocado no fim), cujo prêmio seria passar um mês nesse local bucólico. Essa vivência seria o mote para a confecção de trabalhos artísticos individuais baseados nessa experiência comunitária e idílica. A maquinista da composição, simpática e de fala calma e macia, chamava-se Inês. A turma, porém, não lhe dava sossego, em certos momentos quase a tirando do sério, seja fazendo perguntas demais ou então mexendo onde não devia. Durante todo o percurso, congestionaram o compartimento da direção, numa vivacidade quase infantil, entrando-e-saindo a todo momento da cabine de comando, quase atrapalhando o trabalho da carismática maquinista. O seu vagão era oval, um local de espaço diminuto, cheio de traquitanas mecânicas e eletrônicas. Uma chapa de vidro fumê com 180º de curvatura a partir da cintura, protegia ela dos ventos, do sol, da chuva e, assim, permitia a qualquer pessoa desfrutar das paisagens deslumbrantes que o trem ia alcançando em sua marcha pelas montanhas. Era um belo espetáculo, cortando os campos, abrindo escarpas nas regiões montanhosas e sulcando o vento em direção ao destino. A mobília do compartimento consistia numa cadeira de ferro elevada, sem encosto, cujo assento era feito de couro. Tinha também uma pequena poltrona de veludo e na parte baixa, vários monitores que permitiam a visão de todas as áreas externas do trem. As engrenagens nunca paravam e seguimos sossegados o caminho que nos levava ao paraíso.
Antes, porém, é necessário que se faça uma breve descrição dos outros vagões dessa composição, todos multicoloridos, espaçosos, sem luxo ostensivo mas extremamente confortáveis e receptivos, com amplas janelas que davam para as belas paisagens da Sampalândia. Saindo da capital para uma estação interiorana, a meio caminho entre praias selvagens e campos silvestres, uma discreta música tocava incessantemente, dando prazer e conforto para todas as pessoas que viajavam ali. A primeira sala após o vagão central (o “cérebro eletrônico” onde a Inês ficava hospedada praticamente o tempo todo), era um corredor de banheiros aconchegantes, com chuveiros, vasos e até banheiras. Após, uma porta mexicana dava acesso a um vagão enorme dividido em três partes: uma sala de audiovisual, outra, de acesso á internet e, após, uma biblioteca muito aconchegante. Um novo vagão e estávamos na sala de refeições, muito limpa e receptiva. O outro vagão era de pequenos quartos, todos com mobiliário clean, onde quase nem se percebia a exigüidade do espaço. Depois dos quartos,uma nova sessão de banheiros e, fechando a composição, uma varanda muito aconchegante, de onde podíamos ver os trilhos que ficavam para trás.
Eram muitas as pessoas que embarcaram para essa viagem. Tinha um casal de namorados muito gente fina. Ele chamava-se Akira, um japonês tranquilão e boa-praça. Ela era a Sueli, uma menina de riso radiante e cheia de idéias. Tinha também o Luka, um rapaz não muito falante, mas cheio de energia. O tempo todo fotografava as pessoas. Chamou a atenção o fato de ser muito organizado. Já o Danielzinho era o caçula da turma. Sempre de violão circulando nos vagões, o serelepe rapaz (quase um menininho), era outro boa-praça sorridente e muito inteligente. A Enide era uma indiazinha bonita e carismática. Não falava muito, mas sempre que abriu a boca, parecia um poço de sabedoria e coerência. Recordo dela sempre tomando banho de sol junto à janela, lendo romances e poesias. Já a Rosinha é um caso à parte. Prestativa, educada e muito falante, provocava todo mundo com sua sagacidade e amizade. Porém, é outra que de vez em quando foi surpreendida sozinha, se esbaldando sob o sol, ouvindo alguma música, jogando no celular ou lendo um livro. Outro casal que embarcou com a gente e logo se enturmou de maneira muito animada foi a Lígia e o Éder. Ela tinha cara de menininha sapeca, esperta e inquieta. O Éder era justamente o seu contrário e complemento, bem calado mas não menos simpático. Não se desgrudaram, sempre juntos dando voltas nos vagões ou tomando banhos de sol na varanda do fundo. O Gilberto talvez fosse o mais quieto de todos, mas era aquele líder a quem todos apelamos quando precisamos de uma idéia providencial. Outro que aproveitou muito da viagem para ler bastante, mas na outra janela, longe do sol. Já o Mário foi um barato! Embora não parecesse, era o mais velho da turma. Pouca coisa, é bem verdade. Romântico inveterado, circulava nos vagões menos que a maioria, curtia seu tempo ouvindo grandes standarts da música de décadas passadas e escrevia poemas. Em compensação, todos vinham a ele pedir opinião. Durante todo o tempo, parecia um belho cacique, a quem todos respeitam e se reportam. Ele e Gilberto – penso agora – pareceram, de formas muito distintas, os dois sábios de uma aldeia longínqua. Cacique e pajé. Ou algo assim.
No telão, que ficava no segundo cômodo maior, sentamos várias vezes para ver filmes de uma cineasta moçambicana, Angelina Neves. Ela cria cenas como se escrevesse um grande poema visual. Tal qual Kiarostami, seus enredos são feitos de longos planos-sequência, sinuosos, poéticos e quase silenciosos. Ainda assim, toda a linguagem se torna corpo presente através de suas colocações e ponderações. Após a audição de seus filmes, impreterivelmente saíamos do salão e íamos tomar chá com bolachas, ou café, ou vinho e ficávamos a fiar um fino tecido na roca de nossas ilações.
Teve muito mais gente que subiu ou desceu durante a viagem, o Alba, um inquieto e curioso rapaz que vivia contando histórias pra todos. Também a Eliana, provocante e provocadora, exultante e inteligente. Dela, o que mais ficou guardado na memória foi a clareza com que defendia seus pontos de vista, sempre inusitados e coerentes.
A longa viagem em momento algum nos cansou. Ao contrário, foi feita de êxtases indescritíveis e momentos de pura epifania, que reenergizava nossa alegria exorbitante. A toda hora tínhamos algo novo para ver, ouvir ou experimentar. Nos deliciamos com as iguarias encontradas na geladeira, armários e outros compartimentos. Curtimos pores-do-sol que nenhuma palavra será capaz de descrever. Demos muitas risadas e as poucas lágrimas que alguém em algum momento derramou foi pelo excesso de risos. Quase não incomodamos ninguém – exceto a Inês – tampouco fomos incomodados. Entrar noite adentro foi um prazer, acordar uma benesse. Balançar na rede enquanto o trem desfilava nos trilhos produziu uma sensação alucinógena. E conviver com as pessoas que conviveram conosco, subindo ou descendo em cada nova estação, foi a sublimação da beleza de tudo pudemos viver.
Ah, se há uma curiosidade para saber quando voltamos de lá; nós não voltamos! E se estão querendo saber como é lá, também não há como explicar. Não temos como sintetizar nada e sequer podemos falar alguma coisa sobre os trabalhos que iríamos produzir após a vivência: a longa viagem nunca chega ao seu destino. Viver o percurso foi... tem sido o trabalho. E é uma delícia!...


O enamorado da vida

Eu sou um enamorado da Vida!
Para sentir melhor o céu na minha casa,
Plantei a minha casa entre o mar e a montanha.
Se as ondas vêm rugir a meus pés, a horas mortas,
A lua desce a mim numa carícia estranha.

Bebo as estrelas de mais perto. . . Abraço
Todo o corpo do céu num simples movimento.
E, quando chove, sinto a torrente das chuvas
Trazendo da montanha, em seu penacho de águas,
Frondes, ninhos, calhaus e pássaros ao vento.

Eu sou um enamorado da Vida!
Amo-a por tudo quanto ela me pode dar:
A água fresca da fonte, a carícia da sombra,
E até a calma silenciosa e mansa
Desse crepúsculo que baixa devagar.

Em cada mão de folha a minha boca bebe
O orvalho da manhã como um suave licor.
E abro os pulmões, sorvendo em tudo o que me envolve
Essa onda de volúpia e de êxtase e perfume
Que vem do amor e que me leva para o amor

Eu sou um enamorado da Vida!
Tenho ímpetos de voar, de galgar, de vencer
Colinas, penetrar o coração dos vales,
Relinchando feliz como um potro selvagem
Que solta as crinas no ar para melhor correr;

Ou retesar as asas brancas de gaivota
E atirar-me na fúria incrível das procelas;
Beber em haustos toda a glória do mar alto,
Rolar no bojo dos batéis desarvorados
Ou as asas enxugar no alvo lenço das velas

Vida! Quero viver todas as tuas horas,
As que prendi na mão e as que nunca alcancei.
Ser um pouco de ti no espelho das paisagens
Para, quando morrer, levar dentro dos olhos
A beleza imortal de tudo quanto amei. 
                                                                    Olegário Mariano (O enamorado da vida, 1937)




Alba Atróz: UM FUNCIONÁRIO DA LIMPEZA

Os meus amigos especialistas diziam-me ser um daqueles casos imperscrutáveis. Mas eu resolvi apurar mesmo assim. Peguei imagens de câmeras do circuito como também uma gama de relatos de testemunhas e de um confidente fiel, pra poder compreender tudo.
O certo é que João limpava estações há dez anos – subia e descia as escadas normais e rolantes, dava um trato em plataformas, vagões e repartições – até que parecia saudável e bem adaptado aos tumultos. 
- Gosto do meu trabalho. Gosto desta centopeia cinza... – costumava dizer.
Era assim! Tinha prazer em ficar entre passageiros. Até usava o horário de almoço ou de folga fazendo e refazendo trajetos pelas linhas do metrô, batendo papo, vendo paisagens pela janela ou cochilando entre túneis. Sentia-se depressivo quando não estava neste ambiente de convívio. Já aconteceu dele refazer o percurso duas a três vezes e chegar ao silêncio de casa tarde e dormir com a tv ligada – contou-me um companheiro de serviço. 
 Porém, todos começaram a reparar na mudança repentina de comportamento de João. Num estado de euforia atípica de sua pessoa, parecia muito preocupado, nervoso, olhando a todo instante pros relógios, dizendo odiar os alto falantes, câmeras e a chefia do setor operacional. Adotou alguns hábitos bastante esquisitos. Passara a caminhar como se estivesse algemado.  Quando se punha de pé, automaticamente jogava seus braços pra trás e os ombros se erguiam e se contraiam – pressionando um pescoço duro, que se atrofiara. Escondia as mãos nas costas. Repousando o dorso da direita sobre a palma da esquerda, o contrário começou a lhe incomodar muito. Ele achava ser uma boa forma de disfarçar ou acobertar o tique que tinha no dedo médio da mão repousada – uma pequena sequela de derrame silenciado - e também a feia cicatriz advinda de um ferimento adquirido enquanto salvava um suicida na linha coral. Já tentara usar luvas, mas desistiu, pois elas potencializavam a agonia que passou a atormentá-lo. Mesma sensação ele começou a ter com suas meias, por isso começou a calçar seus sapatos e as botinas da empresa sem elas. E segurava os materiais de limpeza de forma revezada, com um malabarismo de mãos: quando uma ia pegar, a outra permanecia resguardada – era um vai e vem realmente muito estranho. Andava maldizendo as regras que sempre acatara e já não gostava de seu uniforme. Sem permissão, danou a cortar as barras de suas calças e as bocas ficavam largas e desfiadas dando vazão a comentários e chamadas gerenciais que não estava disposto mais a acatar como antes. De uns tempos, adotou um silêncio e uma profunda introspecção. E ia ficando cada vez mais distante daquele funcionário alegre, que os mais antigos conheceram quando ele entrou pra trabalhar no metrô. Alguns afirmavam que ele ficara assim depois das mortes recentes de um irmão e a perca de um amor e de uma morte que presenciou na linha rubi. Tudo isso surtia comentários diversos – alguns condescendentes e complacentes, mas, na maioria, maldosos. A isso se somava piadas advindas de um dos agentes da Sala de Supervisão Operacional (S.S.Ó): o França - um supervisor preguiçoso e debochado, que, abusava de seu poder hierárquico para explorar João e coloca-lo em situações de ignomínia, pedindo-lhe favores impróprios e absurdos quando não fazendo ameaças e inventando informações sobre ter sido escolhido para organizar uma lista de cortes de funcionários na área da limpeza. João odiava vê-lo gritar com os passageiros e reclamar dos acidentes emergentes, em que vítimas estavam precisando de amparo e solidariedade:
- Que merda! – gritava França. - Outro códio 13... Estas merdas acham de se suicidar logo nesta estação...  Agora vou ter que ficar nesta porra até mais tarde... Caralho viu! Vou ter que desmarcar meu encontro... Fico fudido com isso...
E João encarava-o com ódio. Em seus solilóquios praguejava o França. João sentia seu corpo tremer e o coração acelerava quando ouvia os alto falantes anunciarem:
“Funcionário da limpeza... João! Favor comparecer à S.S.Ó”
Era quase sempre o França procurando uma maneira de se safar de responsabilidades próprias, através da ajuda forçada de João. Ele sempre o chamava com a desculpa de que sua repartição estava suja, ensinava-o a usar o rádio e apertar um botão ou outro dos equipamentos para em casos de emergência; e o opressor dava suas escapulidas até alguma repartição próxima, para namorar alguma passageira com quem flertou. Passava uns dez a 15 minutos, ele retornava deslavadamente sorrindo, satisfeito com seu trabalho subtraído. Com o tempo, França arrumou encontros nos fins de turno também e começou a ficar viciado em sair mais cedo. Quando faltava pouco para deixar o posto, o inconsequente abandonava a cabine com João lá dentro com toda a responsabilidade da linha nas mãos até a chegada do operário do turno posterior que cooptava com a atitude de França e assim mantinha um acordo de silêncio, dispensando o funcionário da limpeza que, por sua vez, ia pra casa abalado e cogitando dar uma solução a qualquer hora na situação.
- João... Amanhã vou ter um encontro super importante, hein... Você vai precisar segurar as pontas por 20 minutinhos, tá certo?... Não vai achar de faltar amanhã, hein? Qualquer coisa usa o rádio pra me chamar... Não pode dar nada errado, tá me entendendo?
  Este foi o combinado. E quando o dia seguinte veio...
França viu pelo monitor, João limpando a plataforma e anunciou-o:
“Funcionário da limpeza... João! Favor comparecer à S.S.Ó...”
Ele viu que João continuou a fazer o serviço, então voltou a anunciar:
“Funcionário da limpeza... João! Favor comparecer à S.S.Ó...”
E nada de João atendê-lo...
“Funcionário da limpeza... João! Favor comparecer à S.S.Ó...”
Que porra é essa, João? – perguntava-se França. – Vem logo, merda! Tá me atrasando, caralho...
Assim que o próximo trem deu sinal, rugindo e vindo pelo túnel, João largou a vassoura, aprumou-se, deu um sorriso e mostrou seu dedo médio que tiqueava na direção da câmera, num gesto a mandar França ir se fuder. Em seguida, pôs os braços pra trás, pousou uma mão na outra, atravessou a faixa amarela, esperou o momento certo e se jogou na linha.
O metrô abafou o caso.




Luka Magalhães: 2 poemas sem títulos

Na passagem de nível
Sempre olho para os dois lados
Mesmo sabendo que a vida
Corre em um só trilho

...

São duas estações.
Partimos de uma,
Que a outra chegue,
Mas não queremos
Jamais!


Mais sobre o sarau de domingo, no estilo inconfundível de Akira Yamasaki



domingo a casa amarela
estava linda, clara e contente
em seu interior os sorrisos
das pessoas eram tão amplos
e tão intensamente lúcidos
que por um instante fechei
meus olhos para enxergar
a felicidade morando ali
a todos que vieram novamente
domingo passado para promover
a alegria, o sonho e a amizade
dentro da casa amarela apenas
podemos dizer muito obrigado
muito obrigado, principalmente, àqueles que eu esqueci de mencionar aqui, por desconhecimento dos seus nomes ou por puro esquecimento, tiozinho desmemoriado que sou.
muito obrigado, um abraço a todos do akira.

Foto: Escobar Franelas, no arquivo feicebuquiano de Luka Magalhães