Iniciamos a roda de conversa com uma vivência física inicial proporcionada por Sueli Kimura. Após, a roda de conversa fluiu com as primeiras impressões sobre o tema proposto:
Impressões gravadas:
https://soundcloud.com/escobar-franelas/sets/ineditos-e-inacabados-ago2016
O texto de Escobar Franelas:
O trem
amarelo
O trem partiu da estação Casa Amarela num
certo dia do inverno de 2016. Era uma viagem longa, para uma região campestre
muito remota, incrustada entre o mar e as montanhas. Todos estavam felizes,
eram ganhadores de um concurso literário baseado num poema de Olegário Mariano
(colocado no fim), cujo prêmio seria passar um mês nesse local bucólico. Essa
vivência seria o mote para a confecção de trabalhos artísticos individuais
baseados nessa experiência comunitária e idílica. A maquinista da composição,
simpática e de fala calma e macia, chamava-se Inês. A turma, porém, não lhe
dava sossego, em certos momentos quase a tirando do sério, seja fazendo
perguntas demais ou então mexendo onde não devia. Durante todo o percurso, congestionaram
o compartimento da direção, numa vivacidade quase infantil, entrando-e-saindo a
todo momento da cabine de comando, quase atrapalhando o trabalho da carismática
maquinista. O seu vagão era oval, um local de espaço diminuto, cheio de
traquitanas mecânicas e eletrônicas. Uma chapa de vidro fumê com 180º de
curvatura a partir da cintura, protegia ela dos ventos, do sol, da chuva e,
assim, permitia a qualquer pessoa desfrutar das paisagens deslumbrantes que o
trem ia alcançando em sua marcha pelas montanhas. Era um belo espetáculo, cortando
os campos, abrindo escarpas nas regiões montanhosas e sulcando o vento em
direção ao destino. A mobília do compartimento consistia numa cadeira de ferro
elevada, sem encosto, cujo assento era feito de couro. Tinha também uma pequena
poltrona de veludo e na parte baixa, vários monitores que permitiam a visão de
todas as áreas externas do trem. As engrenagens nunca paravam e seguimos
sossegados o caminho que nos levava ao paraíso.
Antes, porém, é necessário que se faça uma
breve descrição dos outros vagões dessa composição, todos multicoloridos,
espaçosos, sem luxo ostensivo mas extremamente confortáveis e receptivos, com
amplas janelas que davam para as belas paisagens da Sampalândia. Saindo da
capital para uma estação interiorana, a meio caminho entre praias selvagens e
campos silvestres, uma discreta música tocava incessantemente, dando prazer e
conforto para todas as pessoas que viajavam ali. A primeira sala após o vagão
central (o “cérebro eletrônico” onde a Inês ficava hospedada praticamente o
tempo todo), era um corredor de banheiros aconchegantes, com chuveiros, vasos e
até banheiras. Após, uma porta mexicana dava acesso a um vagão enorme dividido
em três partes: uma sala de audiovisual, outra, de acesso á internet e, após,
uma biblioteca muito aconchegante. Um novo vagão e estávamos na sala de
refeições, muito limpa e receptiva. O outro vagão era de pequenos quartos,
todos com mobiliário clean, onde quase
nem se percebia a exigüidade do espaço. Depois dos quartos,uma nova sessão de
banheiros e, fechando a composição, uma varanda muito aconchegante, de onde
podíamos ver os trilhos que ficavam para trás.
Eram muitas as pessoas que embarcaram para
essa viagem. Tinha um casal de namorados muito gente fina. Ele chamava-se
Akira, um japonês tranquilão e boa-praça. Ela era a Sueli, uma menina de riso
radiante e cheia de idéias. Tinha também o Luka, um rapaz não muito falante,
mas cheio de energia. O tempo todo fotografava as pessoas. Chamou a atenção o
fato de ser muito organizado. Já o Danielzinho era o caçula da turma. Sempre de
violão circulando nos vagões, o serelepe rapaz (quase um menininho), era outro boa-praça sorridente e muito
inteligente. A Enide era uma indiazinha bonita e carismática. Não falava muito,
mas sempre que abriu a boca, parecia um poço de sabedoria e coerência. Recordo
dela sempre tomando banho de sol junto à janela, lendo romances e poesias. Já a
Rosinha é um caso à parte. Prestativa, educada e muito falante, provocava todo
mundo com sua sagacidade e amizade. Porém, é outra que de vez em quando foi
surpreendida sozinha, se esbaldando sob o sol, ouvindo alguma música, jogando
no celular ou lendo um livro. Outro casal que embarcou com a gente e logo se
enturmou de maneira muito animada foi a Lígia e o Éder. Ela tinha cara de menininha
sapeca, esperta e inquieta. O Éder era justamente o seu contrário e complemento,
bem calado mas não menos simpático. Não se desgrudaram, sempre juntos dando
voltas nos vagões ou tomando banhos de sol na varanda do fundo. O Gilberto
talvez fosse o mais quieto de todos, mas era aquele líder a quem todos apelamos
quando precisamos de uma idéia providencial. Outro que aproveitou muito da
viagem para ler bastante, mas na outra janela, longe do sol. Já o Mário foi um
barato! Embora não parecesse, era o mais velho da turma. Pouca coisa, é bem
verdade. Romântico inveterado, circulava nos vagões menos que a maioria, curtia
seu tempo ouvindo grandes standarts
da música de décadas passadas e escrevia poemas. Em compensação, todos vinham a
ele pedir opinião. Durante todo o tempo, parecia um belho cacique, a quem todos respeitam e se reportam. Ele e Gilberto
– penso agora – pareceram, de formas muito distintas, os dois sábios de uma
aldeia longínqua. Cacique e pajé. Ou algo assim.
No telão, que ficava no segundo cômodo maior,
sentamos várias vezes para ver filmes de uma cineasta moçambicana, Angelina
Neves. Ela cria cenas como se escrevesse um grande poema visual. Tal qual
Kiarostami, seus enredos são feitos de longos planos-sequência, sinuosos,
poéticos e quase silenciosos. Ainda assim, toda a linguagem se torna corpo
presente através de suas colocações e ponderações. Após a audição de seus
filmes, impreterivelmente saíamos do salão e íamos tomar chá com bolachas, ou
café, ou vinho e ficávamos a fiar um fino tecido na roca de nossas ilações.
Teve muito mais gente que subiu ou desceu
durante a viagem, o Alba, um inquieto e curioso rapaz que vivia contando
histórias pra todos. Também a Eliana, provocante e provocadora, exultante e
inteligente. Dela, o que mais ficou guardado na memória foi a clareza com que
defendia seus pontos de vista, sempre inusitados e coerentes.
A longa viagem em momento algum nos cansou.
Ao contrário, foi feita de êxtases indescritíveis e momentos de pura epifania,
que reenergizava nossa alegria exorbitante. A toda hora tínhamos algo novo para
ver, ouvir ou experimentar. Nos deliciamos com as iguarias encontradas na
geladeira, armários e outros compartimentos. Curtimos pores-do-sol que nenhuma
palavra será capaz de descrever. Demos muitas risadas e as poucas lágrimas que
alguém em algum momento derramou foi pelo excesso de risos. Quase não
incomodamos ninguém – exceto a Inês – tampouco fomos incomodados. Entrar noite
adentro foi um prazer, acordar uma benesse. Balançar na rede enquanto o trem desfilava
nos trilhos produziu uma sensação alucinógena. E conviver com as pessoas que
conviveram conosco, subindo ou descendo em cada nova estação, foi a sublimação
da beleza de tudo pudemos viver.
Ah, se há uma curiosidade para saber quando
voltamos de lá; nós não voltamos! E se estão querendo saber como é lá, também
não há como explicar. Não temos como sintetizar nada e sequer podemos falar
alguma coisa sobre os trabalhos que iríamos produzir após a vivência: a longa
viagem nunca chega ao seu destino. Viver o percurso foi... tem sido o trabalho.
E é uma delícia!...
O enamorado da vida
Eu sou
um enamorado da Vida!
Para
sentir melhor o céu na minha casa,
Plantei
a minha casa entre o mar e a montanha.
Se as
ondas vêm rugir a meus pés, a horas mortas,
A lua
desce a mim numa carícia estranha.
Bebo as
estrelas de mais perto. . . Abraço
Todo o
corpo do céu num simples movimento.
E,
quando chove, sinto a torrente das chuvas
Trazendo
da montanha, em seu penacho de águas,
Frondes,
ninhos, calhaus e pássaros ao vento.
Eu sou
um enamorado da Vida!
Amo-a
por tudo quanto ela me pode dar:
A água
fresca da fonte, a carícia da sombra,
E até a
calma silenciosa e mansa
Desse
crepúsculo que baixa devagar.
Em cada
mão de folha a minha boca bebe
O
orvalho da manhã como um suave licor.
E abro
os pulmões, sorvendo em tudo o que me envolve
Essa
onda de volúpia e de êxtase e perfume
Que vem
do amor e que me leva para o amor
Eu sou
um enamorado da Vida!
Tenho
ímpetos de voar, de galgar, de vencer
Colinas,
penetrar o coração dos vales,
Relinchando
feliz como um potro selvagem
Que
solta as crinas no ar para melhor correr;
Ou
retesar as asas brancas de gaivota
E
atirar-me na fúria incrível das procelas;
Beber
em haustos toda a glória do mar alto,
Rolar
no bojo dos batéis desarvorados
Ou as
asas enxugar no alvo lenço das velas
Vida!
Quero viver todas as tuas horas,
As que
prendi na mão e as que nunca alcancei.
Ser um
pouco de ti no espelho das paisagens
Para,
quando morrer, levar dentro dos olhos
A
beleza imortal de tudo quanto amei.
Olegário Mariano (O enamorado da vida,
1937)
Alba Atróz: UM FUNCIONÁRIO DA LIMPEZA
Os meus amigos especialistas diziam-me ser um daqueles casos imperscrutáveis. Mas eu resolvi apurar mesmo assim. Peguei imagens de câmeras do circuito como também uma gama de relatos de testemunhas e de um confidente fiel, pra poder compreender tudo.
O certo é que João limpava estações há dez anos – subia e descia as escadas normais e rolantes, dava um trato em plataformas, vagões e repartições – até que parecia saudável e bem adaptado aos tumultos.
- Gosto do meu trabalho. Gosto desta centopeia cinza... – costumava dizer.
Era assim! Tinha prazer em ficar entre passageiros. Até usava o horário de almoço ou de folga fazendo e refazendo trajetos pelas linhas do metrô, batendo papo, vendo paisagens pela janela ou cochilando entre túneis. Sentia-se depressivo quando não estava neste ambiente de convívio. Já aconteceu dele refazer o percurso duas a três vezes e chegar ao silêncio de casa tarde e dormir com a tv ligada – contou-me um companheiro de serviço.
Porém, todos começaram a reparar na mudança repentina de comportamento de João. Num estado de euforia atípica de sua pessoa, parecia muito preocupado, nervoso, olhando a todo instante pros relógios, dizendo odiar os alto falantes, câmeras e a chefia do setor operacional. Adotou alguns hábitos bastante esquisitos. Passara a caminhar como se estivesse algemado. Quando se punha de pé, automaticamente jogava seus braços pra trás e os ombros se erguiam e se contraiam – pressionando um pescoço duro, que se atrofiara. Escondia as mãos nas costas. Repousando o dorso da direita sobre a palma da esquerda, o contrário começou a lhe incomodar muito. Ele achava ser uma boa forma de disfarçar ou acobertar o tique que tinha no dedo médio da mão repousada – uma pequena sequela de derrame silenciado - e também a feia cicatriz advinda de um ferimento adquirido enquanto salvava um suicida na linha coral. Já tentara usar luvas, mas desistiu, pois elas potencializavam a agonia que passou a atormentá-lo. Mesma sensação ele começou a ter com suas meias, por isso começou a calçar seus sapatos e as botinas da empresa sem elas. E segurava os materiais de limpeza de forma revezada, com um malabarismo de mãos: quando uma ia pegar, a outra permanecia resguardada – era um vai e vem realmente muito estranho. Andava maldizendo as regras que sempre acatara e já não gostava de seu uniforme. Sem permissão, danou a cortar as barras de suas calças e as bocas ficavam largas e desfiadas dando vazão a comentários e chamadas gerenciais que não estava disposto mais a acatar como antes. De uns tempos, adotou um silêncio e uma profunda introspecção. E ia ficando cada vez mais distante daquele funcionário alegre, que os mais antigos conheceram quando ele entrou pra trabalhar no metrô. Alguns afirmavam que ele ficara assim depois das mortes recentes de um irmão e a perca de um amor e de uma morte que presenciou na linha rubi. Tudo isso surtia comentários diversos – alguns condescendentes e complacentes, mas, na maioria, maldosos. A isso se somava piadas advindas de um dos agentes da Sala de Supervisão Operacional (S.S.Ó): o França - um supervisor preguiçoso e debochado, que, abusava de seu poder hierárquico para explorar João e coloca-lo em situações de ignomínia, pedindo-lhe favores impróprios e absurdos quando não fazendo ameaças e inventando informações sobre ter sido escolhido para organizar uma lista de cortes de funcionários na área da limpeza. João odiava vê-lo gritar com os passageiros e reclamar dos acidentes emergentes, em que vítimas estavam precisando de amparo e solidariedade:
- Que merda! – gritava França. - Outro códio 13... Estas merdas acham de se suicidar logo nesta estação... Agora vou ter que ficar nesta porra até mais tarde... Caralho viu! Vou ter que desmarcar meu encontro... Fico fudido com isso...
E João encarava-o com ódio. Em seus solilóquios praguejava o França. João sentia seu corpo tremer e o coração acelerava quando ouvia os alto falantes anunciarem:
“Funcionário da limpeza... João! Favor comparecer à S.S.Ó”
Era quase sempre o França procurando uma maneira de se safar de responsabilidades próprias, através da ajuda forçada de João. Ele sempre o chamava com a desculpa de que sua repartição estava suja, ensinava-o a usar o rádio e apertar um botão ou outro dos equipamentos para em casos de emergência; e o opressor dava suas escapulidas até alguma repartição próxima, para namorar alguma passageira com quem flertou. Passava uns dez a 15 minutos, ele retornava deslavadamente sorrindo, satisfeito com seu trabalho subtraído. Com o tempo, França arrumou encontros nos fins de turno também e começou a ficar viciado em sair mais cedo. Quando faltava pouco para deixar o posto, o inconsequente abandonava a cabine com João lá dentro com toda a responsabilidade da linha nas mãos até a chegada do operário do turno posterior que cooptava com a atitude de França e assim mantinha um acordo de silêncio, dispensando o funcionário da limpeza que, por sua vez, ia pra casa abalado e cogitando dar uma solução a qualquer hora na situação.
- João... Amanhã vou ter um encontro super importante, hein... Você vai precisar segurar as pontas por 20 minutinhos, tá certo?... Não vai achar de faltar amanhã, hein? Qualquer coisa usa o rádio pra me chamar... Não pode dar nada errado, tá me entendendo?
Este foi o combinado. E quando o dia seguinte veio...
França viu pelo monitor, João limpando a plataforma e anunciou-o:
“Funcionário da limpeza... João! Favor comparecer à S.S.Ó...”
Ele viu que João continuou a fazer o serviço, então voltou a anunciar:
“Funcionário da limpeza... João! Favor comparecer à S.S.Ó...”
E nada de João atendê-lo...
“Funcionário da limpeza... João! Favor comparecer à S.S.Ó...”
Que porra é essa, João? – perguntava-se França. – Vem logo, merda! Tá me atrasando, caralho...
Assim que o próximo trem deu sinal, rugindo e vindo pelo túnel, João largou a vassoura, aprumou-se, deu um sorriso e mostrou seu dedo médio que tiqueava na direção da câmera, num gesto a mandar França ir se fuder. Em seguida, pôs os braços pra trás, pousou uma mão na outra, atravessou a faixa amarela, esperou o momento certo e se jogou na linha.
O metrô abafou o caso.
Luka Magalhães: 2 poemas sem títulos
Na passagem de nível
Sempre olho para os dois lados
Mesmo sabendo que a vida
Corre em um só trilho
...
São duas estações.
Partimos de uma,
Que a outra chegue,
Mas não queremos
Jamais!